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O CHAMADO DE ABRAÃO

Abrão era jornalista e por muitos e muitos anos trabalhou na grande imprensa fazendo reportagens nas mais diversas áreas. Era até bem sucedido na sua profissão, mas não havia atingido o auge da carreira para alguém com mais de quarenta anos. Prevendo dias piores, fez um curso de pós-graduação em gestão para eventualmente ter o seu próprio negócio caso perdesse o emprego. A família de  Abrão era tradicional e pertencia a antigos troncos paulistas, cujas origens remontavam os primeiros tempos coloniais.
            Sua vida amorosa estava caminhando, pois tinha um velho relacionamento com uma professora que já se estendia por mais de dez anos. Em verdade parecia mais uma relação de amizade do que um caso amoroso, mas convenhamos que o nosso personagem não estava muito apaixonado e queria mesmo era uma companheira inteligente para passar o resto dos seus dias.
Sarah era professora, uma pessoa independente e culta que gostava de caminhar com suas próprias pernas, detestando qualquer tipo de interferência em suas decisões de vida. Viajara muito, conhecera a Europa e o Oriente, terra dos seus pais, nascidos na Síria. Falava fluentemente o francês, o árabe, grego e espanhol.  Abrão, depois de muitos anos de paquera, resolveu pedi-la em casamento. Sarah ficou um pouco assustada, pois não estava preparada para dar um passo tão grande na relação morna que tinha com o  Abrão, mas acabou topando a empreitada desde que ele viesse morar em seu apartamento, pois caso não desse certo, ela colocaria as suas malas na porta e adeus.
Foi um casamento simples, apenas com a cerimônia no cartório e um almoço com os familiares e amigos mais íntimos. Era um casal maduro e pelo andar da carruagem tudo indicava que não teriam filhos. Sarah próxima dos quarenta anos e as voltas com um doutorado, não queria nem pensar em coisas da maternidade. Não tinha tempo para isso, dizia para amigos e parentes que ainda tinham uma pitada de esperanças. Mas peço paciência ao leitor, pois ficará surpreendido com o que virá depois.
Casados e felizes, pelo menos é o que transparecia para aqueles que compartilhavam da amizade do casal, foram tocando a vida. Sarah com o seu interminável doutorado sobre a influência da literatura grega na literatura russa, dando aulas em colégios para sobrar uns trocados para fazer suas viagens, mal tinha tempo para o marido, que também viajava muito por força de sua profissão. Como Sarah não sabia fritar um ovo e muito menos de outras lidas domésticas, a solução foi contratar Hagar, uma jovem mulata, para cuidar da casa. Ela foi indicada por uma amiga que conhecia a moça, garantindo que se tratava de pessoa idônea, fato que ficou comprovado nos anos em que ela lá trabalhou.
Mas outras novidades estavam por acontecer. Abrão foi demitido da revista que dirigia e resolveu montar uma assessoria para empresas, aproveitando o longo relacionamento que mantivera com empresários e órgãos de imprensa nos mais de trinta anos de carreira. Investiu muito no escritório, com funcionária, mobiliário moderno, telefone etc., mas os contratos não chegaram apesar das promessas. As coisas começaram a ficar complicadas, pois ele gastou a indenização com o pagamento de pessoal, aluguel e outras despesas e o faturamento era pífio. Por fim Abrão fechou o escritório e teve de viver da pequena aposentadoria e alguns trabalhos eventuais que seus amigos conseguiam para ele. Ficava o tempo todo em casa, ora trabalhando, ora pensando na vida.
Por esta época Hagar, a jovem empregada, comunicou à patroa que estava grávida de três meses e o pai havia desaparecido. Preocupada queria saber se não seria dispensada. Sarah ficou ofendida com a pergunta e se comprometeu em mantê-la no emprego e que a ajudaria no que fosse necessário para que tivesse o bebê. Abrão ficou radiante com a possibilidade de ter uma criança em casa e deu todo apoio a esposa com relação à decisão sobre a empregada.
Nove meses passam depressa, não para o casal que não via a hora do bebê nascer e Hagar voltar a trabalhar, pois com a gravidez precisaram contratar outra empregada para dar conta do recado. O garoto chegou e Abrão se desmanchou com a possibilidade de ser um quase avô para o menino. Saiu às compras e retornou com um exagero de presentes para o garoto, incluindo uma bicicleta que não ser sabe quando utilizaria.
Tempos depois, com o garoto já caminhando pelo antes bem decorado apartamento, Sarah resolveu ter uma conversa com a empregada, pois havia decidido adotar a criança que seria a futura herdeira do casal sem filhos. A conversa foi mais ou menos assim:
- Hagar, tenho um assunto muito sério para conversar com você, disse Sarah bastante séria e formal.
- Meus Deus do céu! Então a senhora já sabe? Respondeu preocupada a empregada.
- Sabe o que criatura?  Do que você está falando? Vamos, desembuche, disse irritada a patroa.
 Gaguejando e não conseguindo mentir para a patroa que ela respeitava muito, disse:
 - O seu  é o pai do menino e já estou esperando outro dele, disse a pobre Lia já em prantos e pedindo perdão para a patroa.

Sarah ficou pálida e Hagar cuidou de dar-lhe um copo de água com açúcar, pois a patroa ficou paralisada e sem ação por alguns minutos. Por fim, recompondo-se, Sarah levantou-se e não disse uma palavra. Pensou em expulsar o marido de casa, mas teria que colocar a empregada seduzida com a criança na rua da amargura.  Sua formação humanista não permitiria tal decisão. Sarah, humilhada, decepcionada e muito triste, arrumou sua mala e deixou com a empregada o recado de que mandaria buscar o restante de suas coisas depois. Nunca mais falou com o marido. Ficou alguns dias na casa da mãe até conseguir um apartamento para morar e logo esqueceu a desventura.
Sarah passou a se dedicar de corpo e alma ao seu doutorado e logo passou a lecionar em uma universidade. Ganhou prestígio, escreveu livros, deu palestras. Infeliz no amor e feliz no trabalhe. Sem paciência para novos relacionamentos, a professora continuou sua vida acadêmica até o final da vida, orientando teses e dissertações, apesar de bastante assediada por sua simpatia e inteligência.
 Abrão tentou em vão manter contato com Sarah, que desligava o telefone quando percebia que era ele. Sem condições de manter o apartamento, foi morar com Hagar em uma edícula numa periferia, onde tempos depois nasceram mais dois filhos. A sua família, muito tradicionalista e preconceituosa, jamais aceitou o casamento com uma mulher semi-analfabeta, pobre e ainda por cima negra. Isolado da vida social e da família, o outrora garboso e intelectualizado jornalista recolheu-se e ficava cuidando dos filhos enquanto Hagar trabalhava como faxineira para ajudar no orçamento. Não demorou muitos anos e a mulher trouxe para morar em casa um namorado e apresentou o velho  Abrão como seu pai. Resignado e sem ter para onde ir com a sua parca aposentadoria, lá ficou até que o internaram em um asilo para idosos desamparados.
 Abrão queria filhos que muito provavelmente Sarah não lhe daria e recorreu à Lia, pobre empregada para atender aos seus anseios e devaneios. Para seu azar o Criador não lhe deu guarida como na história bíblica e Sarah partiu deixando-o a ver navios, ou melhor, a ver mais filhos chegando. Mas no fim da vida, eis que  Abrão teria a surpresa que preferia ter morrido antes de conhecê-la. Lia confessou-lhe que os filhos não eram dele e as transas foram apenas para que pensasse que era o pai. Ele nunca pensou em fazer um exame, pois estava tão radiante com a paternidade que nem pensou neste risco. A ingenuidade dos homens causa pena, que o digam as mulheres.

Abrão sem a Hagar e com a memória a lhe pregar peças, ficou a deriva e acabou sendo recolhido num asilo para idosos onde passa as longas tardes da vida que pouco lhe resta a falar dos seus grandes projetos que nunca colocou em prática, mas que ainda acredita que serão um grande sucesso financeiro e político. Enquanto a Sarah continua ativa intelectualmente, escrevendo e traduzindo livros e orientando teses. Não se casou mais e passou o resto de sua longa vida com seus livros, plantas e cães. 

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