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Mostrando postagens de 2012
O BAURU DO GOUVEIA Alguns sabores da vida a gente nunca esquece, principalmente aqueles da juventude. Não eram sabores sofisticados de bons restaurantes, mas coisas simples que matavam a fome no sábado ou domingo à noite depois dos programas bons e ruins. Na Vila Gerty, São Caetano do Sul, perto da Praça da Figueira, havia um bar simples, meio sujo, meio mal frequentado, mas que servia um bauru delicioso: o bar do Gouveia. A receita era simples: pão quente na chapa, mozarela, presunto, rodelas de tomate e um delicioso molho vinagrete à portuguesa que dava o toque final. Era de lamber os beiços. O Bar do Gouveia era o típico bar da crônica do Antonio Prata sobre os bares simples e rústicos frequentados por gente meio intelectual, meio de esquerda, só que na minha época nunca conheci por lá alguém meio intelectual e meio de esquerda. O que existia mesmo era gente meio proletária, meio classe média baixa. Meio de esquerda, confesso que já fui e algumas vezes para lá arrastei meus
FÉRIAS NO INTERIOR E OUTRAS HISTÓRIAS Ao ler uma crônica do José de Souza Martins sobre as férias no interior, tive a sensação de que perdi o trem. Explico: há tempos pensei em escrever uma crônica com o mesmo tema e o velho Professor Martins me passou a perna, no bom sentido, é claro. Acontece que ele, como eu, morava em São Caetano do Sul, o C do ABC e também passávamos as férias no interior e tomávamos o mesmo trem em direção à Estação da Luz e de lá para o paraíso. Ele para Pinhalzinho, perto de Bragança Paulista e eu para Lavínia, na Noroeste de São Paulo.  A estação antiga tinha um ar romântico talvez por conta do estilo que os ingleses, fundadores da São Paulo Railways, trouxeram para o Brasil. Tenho boas lembranças do sociólogo cronista, além dos seus livros e artigos, como a palestra que ele apresentou na Fundação Santo André nos anos 70 sobre a música caipira. Depois de uma análise teórica sobre a diferença entre música caipira e música sertaneja - que muita gente pe
AS CARAMBOLAS DO ZECA Ter um pé de carambola no quintal é um privilégio e quem garante é o meu amigo Zeca. Pássaros em profusão invadem os seus domínios para saboreá-las e ele feliz, ri de modo a ouvir-se de longe. Às vezes pega o violão e começa a cantar e, de repente, sabiás, sanhaços, maritacas pousam na sua varanda para ouvi-lo. Mentira! Vocês não conhecem o Zéca da Silva, um sujeito encantador de passarinhos. Canta tão bem na língua dos pássaros que com eles conversa e tem bem guardados seus inúmeros segredos. No seu quintal a passarada chega cedo para o banquete diário, acordando toda a vizinhança. Um vizinho do lado já reclamou do barulho no juizado de pequenas causas, mas levou um sabão do meritíssimo, que disse em seu despacho: “Não gostar de passarinho em cidade grande, poluída e desalmada como a nossa, merece uma boa lição: colocar frutas para os passarinhos todos os dias durante um ano. E tenho dito”.  Mentira! Pois perguntem ao Zeca que não é hom
O CAÇADOR DE ÁGUAS Meu pai, já maduro, descobriu-se um caçador de águas. Um alemão com quem trabalhava e que vivia metido em pesquisas sobre radestesia, o convenceu que ele tinha o dom para achar água.  Daí foi um passo para fazer a experiência e tentar descobrir pequenos lençóis freáticos com  alguns metros de profundidade. Combinaram para tirar a prova num fim de semana e lá foram eles procurar água em um sítio nos arredores de São Paulo. O alemão preparou uma forquilha de goiabeira, segurou-a com as duas mãos, mantendo a ponta para cima e começou a caminhar em várias direções, conforme contava meu pai. De repente ele parou como se sentisse uma estranha sensação e chamou meu pai para ver. A forquilha envergava para baixo, forçando o homem a segurá-la com energia, como se ela quisesse penetrar no solo. Ele deu a forquilha para o meu pai e ele também sentiu um enorme tranco, como se alguém a puxasse para baixo com grande energia. Aqui tem água, disse o alemão, e pode cavar
A TERRA DO NUNCA E A PARTIDA DA DONA ÁUREA FERRARI DA SILVA Dona Áurea, mãe do amigo Edson Zeca da Silva, como a minha e a da  Dalva, também partiu para a Terra do Nunca. Há tempos ela se refugiu depois de um AVC. Não que estivesse impossibilitada, mas optou ficar como se o estivesse. Não recebia visitas e não saia de casa, recolhendo-se quando o sol se punha. Vivia como um compromisso, sem prazeres e sem alegrias. Seus contatos humanos praticamente se restringiam ao filho e a enfermeira.  Como diria o poeta Drummond: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação” no poema Meus ombros suportam o mundo.         Dona Áurea Ferrari da Silva era simpática, mesmo sendo uma mulher de poucos sorrisos, sempre séria, ensimesmada - pelo menos essa é a imagem que guardei dela - mas gostava de cantar, principalmente as músicas do Chico Alves, Herivelto Martins, Lupicínio entre outros.  Nas festas familiares seu filho dava o tom no violão e a arrastava para o
UM CAFÉ COM ANTONIETA SECCO THENÓRIO Passávamos um fim de semana em Piedade na casa dos Thenórios. Fazia um frio que doía nos ossos. Como sou um madrugador acordei com os primeiros filetes de luz que entraram pela janela e senti uma vontade imensa de tomar um cafezinho bem quente. Logo levantei e fui para a cozinha, evitando fazer barulho para não acordar o pessoal.  Água na chaleira, pó no coador e fiquei esperando o fogo fazer o seu serviço. Enquanto isso fiquei olhando pela janela o gramado que parecia um tapete branco. Sugeria neve, mas não era. Ainda bem. Não sinto nem um pouco de inveja de quem vive onde cai neve. Neve é triste, monocromática e não tem graça nenhuma.  Mas eis que a água ferveu e comecei a passar o esperado café. Café gostoso, café com cheiro bom, cheiro de roça, cheiro de mato, cheiro de manhã se espalhou pela casa. Logo ouvi uns passos pelo corredor. Era a Dona Antonieta, mãe do nosso anfitrião, que se levantou com o cheirinho da bebida que conquistou a
MANHATTAN REVISITADA A broca do dentista doía fundo, parecendo que fustigava a minha alma. Enquanto o dentista cutucava minhas caries, dava uma espiadela na televisão ligada. De repente, aparece um avião se aproximando das torres do World Trade Center. Vai bater, vai bater... O avião se choca contra uma das torres que começa a cair como um castelo de cartas. Segurei a mão do dentista para ver melhor o triste espetáculo. Não era ficção ou efeito especial de um filme. Era uma triste realidade. Um avião, seqüestrado por terroristas do Al Qaeda atingiu um dos principais símbolos do império norte-americano. Milhares de mortos. Eram pessoas que estavam ali para trabalhar, fazer negócios, reuniões e de repente encontraram uma morte inexplicável. Neste momento lembrei-me de um velho poema do Drummond, Elegia 1938, que termina com o verso: “Porque não podes, sozinho, dinamitar a Ilha de Manhattan”. Será que os extremistas do Al Qaeda leram o poema? Ou será que é um desejo inconsciente
ITANINA LADEIA: BREVE RETRATO DE UMA MÃE QUE PARTIU Nascida em Buenópolis, MinasGerais, era ainda criança quando a família mudou-se para o Rio de Janeiro e depois para Araçatuba, São Paulo.  Gostava de cantar e declamar versos, principalmente religiosos. Era católica praticante, ia à missa toda semana, mas permitia-se algumas escapadelas aos centros espíritas, principalmente na casa da dona Nésia, uma simpática vizinha russa, amiga da família. Era uma grande contadora de histórias, muitas das quais são inesquecíveis. Seus avós, coronéis escravocratas falidos no século dezenove, deixaram apenas as histórias que ela contava para os filhos. Sentávamos todos em sua cama para ouvir os contos de fada e histórias da família.  A família passou por muitas dificuldades, pois seu pai, que apesar de culto e bem informado sobre tudo o que acontecia no mundo, não se adaptou a nenhuma profissão que exigia rotina, horário fixo e chefe. Foi professor primário, delegado, juíz de paz e finalm
 OS VELHOS TEMPOS DA JOVEM GUARDA Anos sessenta, quando a Jovem Guarda fervilhava na televisão, no rádio, nos cabelos quase compridos da garotada, nas botinhas com salto carrapeta, nas calças rancheiras justas de brim bege (pois o índigo blues só para quem tinha dinheiro para comprar nas lojas de contrabando ou viajava para o exterior), as camisas coloridas, pulseiras etc. O rock and roll estava no ar. Como os Beatles eram inacessíveis o jeito foi criar uma opção cabocla e o Roberto Carlos e sua turma ocuparam esse espaço entre os adolescentes. Quase todo adolescente chegou a sonhar em ser um ídolo da jovem guarda, cantar nos programas de televisão, gravar um disco e fazer sucesso com as meninas. Alguns tinham até talento e mandavam bem, cantando nas rodinhas ou em festas dos colégios. Juca, ou Antonio Carlos Junquetti era um desses garotões extrovertidos com cabelo na testa que fazia sucesso com as garotas imitando o Jerry Adriani.  Mas havia um cantor de verdade no colégio,
OS DIÁRIOS DO ALMIRANTE A história vista pelos diários de bordo. Relendo os Diários de Bordo do Capitão e depois Almirante Graham Eden Hamond* escritos nos longínquos anos de 1825 e 1838, revi umas passagens interessantes em que o oficial inglês escreve sobre o Brasil e seu povo.  Na primeira parte do diário (1825), Hamond ainda era capitão e foi responsável por trazer a comitiva encarregada do reconhecimento da independência do Brasil. A maior parte do diário se refere aos encontros protocolares e alguns aspectos técnicos de navegação, mas como era do seu estilo fazer comentários sarcásticos sobre pessoas e costumes, não resisti e anotei alguns deles, muitos não são politicamente corretos para um oficial estrangeiro em viagem de representação, mas que representavam a visão eurocêntrica e elitista de uma potência imperial européia. Era agosto de 1825 e ele avista uma carruagem puxada por quatro cavalos que era dirigida por nada menos que o nosso jovem e fogoso imperador, inf
VIDA DE BOIADEIRO Meu amigo Álvaro Pequeno, por contradição um grande sujeito, no tamanho e na generosidade, defendeu uma tese um tanto atípica nos meios acadêmicos sobre os peões de boiadeiro em sua trajetória desde os tempos heróicos dos tropeiros. Os atuais peões de boiadeiro usam roupas de grife americanas, com botas que chegam a custar até dois mil dólares. As festas que são realizadas em Barretos chegam a reunir mais público dos que os grandes clássicos de futebol. Os peões colocam suas vidas em jogo por alguns segundos de fama em cima de um boi selvagem. Quando conseguem vencer a disputa e sobrevivem no lombo do boi, podem ganhar uma pequena fortuna. Quando não, podem sobrar umas costelas, pernas  quebradas ou até uma paralisia.  Os pobres peões são parte do espetáculo, mas dormem embaixo dos caminhões enquanto aguardam sua vez de entrar na arena e quando são acidentados são abandonados pelos organizadores. Quando soube da sua pesquisa lhe ofereci umas fotog
VIZINHOS Não conheço meus vizinhos. Não sei o que eles fazem, o que pensam, em quem votam ou do que não gostam. Alguns são silenciosos, outros são barulhentos, mas é somente isso que posso lembrar sobre eles. Quando era criança sabia a vida de todos os habitantes das redondezas. Meu bairro era uma pequena aldeia e todos estavam conectados. Hoje estamos todos conectados globalmente e perdemos o contato pessoal com as pessoas próximas. Pensando nisso, resolvi revisitar a mesma rua onde morei até os vinte e sete anos.  Era uma rua com pouco movimento e lá podíamos brincar de taco o dia inteiro sem o risco de passar um carro em velocidade. O taco era um tipo de basebol adaptado às circunstâncias e recursos disponíveis. Fui abrindo o livro da memória e resgatando os velhos tempos.  Naquela rua jogávamos também futebol com bolas de borracha, de couro ou feitas com meias. Trânsito só tinha mesmo nas ruas laterais, por onde transitavam os ônibus circulares. Algumas vezes os vizinhos r
O MARQUINHOS Marquinhos era “mariquinha”. Era assim que todos os garotos do bairro se referiam a ele. A molecada era cruel, mas ele nem dava bola para a galera. Com sete ou oito anos, passava batom na boca e usava os sapatos de salto de sua irmã mais velha. Muita gente da turma falava em “comer” o Marquinhos, mas era só conversa, principalmente, porque ele nem sabia direito o que era isso. E continuava com seu jeitinho efeminado, dengoso e sempre na dele. Pobre Marquinhos morava num cortiço com mais seis irmãos em apenas um quarto. O banheiro era dividido com outras famílias. Sua mãe dona Encarnacion, era uma espanhola magra e doente que trabalhava duro para sustentar a família. O marido de vez em quando aparecia para ver os filhos, mas ajudava pouco ou nada. O dono do cortiço quase sempre aparecia para cobrar os aluguéis atrasados. Parava o Chevrolet Bel Air e descia engravatado com o filho e um empregado. Era um acontecimento na vizinhança.  Era comer ou pagar o aluguel. Don
O GOSTINHO DO INTERIOR O gostinho das coisas do interior faz parte da vida daqueles que deixam a vida bucólica dos sítios e fazendas e vão para as cidades encontrar novas oportunidades de vida. Muitos trazem nas mudanças algumas latas de doces caseiros, de queijo meia cura, um pouco de café em grão e vai por ai. Além de tudo, carregam também a saudade dos amigos, dos bichos, dos passarinhos cantando de madrugada e outras lembranças que permanecem por toda a nossa viagem por este planeta. Quando se recebe a visita de alguém da terrinha, é inevitável que o visitante traga umas encomendas. Visitar alguém da cidade e ir de mãos vazias é um sacrilégio imperdoável. Conheci uma pessoa que deixava para comprar uma lembrancinha em algum lugar próximo da estação ou rodoviária. Numa dessas comprou um queijo meia cura que não era da cidade mineira de onde vinha, mas do interior de São Paulo. Pois é, desculpou-se dizendo que foi enganado lá mesmo. “São os tempos! Não se pode confiar em nin