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AS JABUTICABAS

>Alguns anos atrás, um amigo dos velhos e saudosos tempos apareceu em casa. Paulo Célio Duarte ou apenas Paulinho, foi na sua adolescência, um revolucionário. Não chegou a pegar em armas, mas prometia na época que a classe operária tomaria o poder e ele seria um comissário do partido (que não me lembro qual era), fiscalizando o cumprimento das diretrizes da revolução popular. Nunca soube e, também, não tive coragem de perguntar se o seu fervor revolucionário era por influência dos irmãos mais velhos ou tinha mesmo muita convicção.

Quando me visitou já era um cadeirante, condição em que ficou por causa de um estupido atropelamento ao atravessar uma rua tarde da noite. Como era poeta, disse que a lua estava tão bonita que olhou para cima e não viu o carro se aproximando.  Ficou lá estirado por horas, pois o motorista não teve a dignidade de socorrê-lo, talvez por estar embriagado.  Ficamos os dois a relembrar nossos tempos de companheirismo em que distribuíamos panfletos ou fazíamos reuniões quase festivas para criticar o governo militar e prometer o paraíso para o proletariado. O Paulinho foi mais longe do que eu, que cedo abandonei o barco por começar a desconfiar dos revolucionários e das possibilidades de derrubar o governo. Alguns eram até sinceros e queriam mesmo a volta da democracia, mas outros estavam mesmo prometendo substituir a ditadura da direita pela da esquerda.

O meu amigo passou por maus bocados antes do acidente que o deixou paralítico. Foi preso duas ou três vezes e na última passou quatro meses no pau-de-arara, técnica de tortura em que o investigado fica nu e pendurado de cabeça para baixo levando choques na genitália e outras gentilezas com as quais os torturadores se especializaram. Gago, não falou quase nada além de xingar os carrascos. Não falou porque não sabia nada mesmo, pois seus irmãos há tempos estavam na clandestinidade e passavam longe da casa dos pais que estava constantemente vigiada. Mas numa visita do DEOPS, o Paulinho estava em casa lendo no maior sossego, o livro Profeta Armado do Leon Trotsky. Levaram o menino como se fosse um troféu, um achado. Fiquei sabendo da prisão pelo irmão dele. Diante disso, eu e outros colegas, ficamos apreensivos com a possibilidade de o Paulo abrir o bico e dar os nomes dos seus amigos mais chegados, mesmo que não fossem relevantes para os órgãos de segurança. Mas ele resistiu firme e não disse o nome de ninguém, nem mesmo dos seus desafetos, coisa comum naqueles tempos.

Foram quatro meses de torturas e no final desistiram, pois chegaram à conclusão de que ele não ia falar mesmo. Mas na pior fase das torturas ele chegou a pensar em suicídio, simulando um encontro no viaduto do Chá com algum militante e de lá se atiraria. Felizmente não deu certo e ele voltou para o xadrez. No último mês em que ficou preso, encontrou outros presos que lá passavam o tempo lendo e discutindo política, entre eles o Betinho e um advogado que se tornou famoso por defender presos políticos depois de libertado.

Na época da visita ele estava mais zen e planejava uma viagem de carro até os Estados Unidos e seria, caso vingasse, o primeiro cadeirante a viajar tão longe. Lia e relia o Grande sertão Veredas do Guimarães Rosa, seu escritor favorito, citando de cor páginas inteiras do grande romancista.  Neste dia contou-me que passou maus bocados numa blitz policial. Após parar o carro, o policial ordenou que saísse sem dar tempo para que ele explicasse que era um cadeirante. Com a arma apontada para sua cabeça e tremendo, o policial pensou que ele iria reagir e por pouco não disparou a arma. Muito calmo, ele conseguiu tranquilizar policial até a chegada do oficial que comandava a operação.

E a conversa com o Paulo viajou por todos os cantos em que andou, sempre de carona, fato de que se orgulhava por ter conhecido o Brasil e toda a América do Sul. Foi com uns amigos, preso no Uruguai, ainda na época em que as ditaduras estavam à solta por esses lados. A prisão foi por engano e se suspeitava que os policiais queriam extorqui-los.  Como não tinham dinheiro, o jeito foi libertá-los. No final considerou que a prisão foi proveitosa, pois arranjaram lugar para dormir e comida de graça.

Já com a conversa em ritmo de cruzeiro minha filha ainda pequena, aparece com uma bela jabuticaba e oferece para o Paulo. Ele olhou bem a jabuticaba e comentou: “É pra levar para repartir em casa ou como aqui mesmo”. Ri muito e até demorei para explicar que era a primeira produção e só deu mesmo meia dúzia da saborosa fruta. E o Paulo, um naturista autodidata, discorreu longa conversa sobre a fruta que só existe no Brasil. Contou que eu um sítio da família no sul do estado, havia vários pés e na florada, era a alegria das abelhas que ele criava para a produção de mel.

Às vezes ele aparecia para tomar um vinho e fazer uma boquinha e não só uma vez dormiu em casa sempre com a complacência da Celinha que tinha por ele muito carinho. Gostava de um baseado, que fumava sem nenhum constrangimento, mas pedia para levá-lo para fora para não deixar cheiro na casa.

Paulinho viajou antes do combinado sem realizar o seu sonho de viagem deixando um filho e, comigo, mais de mil poemas inéditos para que eu lesse e opinasse. Na sua última visita, levou uns dez livros de minha biblioteca, que pretendia ler numa temporada que passaria no sítio. Nunca mais voltou e só soube de sua morte após tentar ligar para seu telefone que não atendia. Só soube mesmo depois que consegui o telefone de sua irmã.

Lembrei do Paulo Duarte ao ver a minha jabuticabeira carregada de flores que em breve serão frutos que prazerosamente divido com maritacas, sabias e bem-te-vis.

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