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VIZINHOS

Não conheço meus vizinhos. Não sei o que eles fazem, o que pensam, em quem votam ou do que não gostam. Alguns são silenciosos, outros são barulhentos, mas é somente isso que posso lembrar sobre eles. Quando era criança sabia a vida de todos os habitantes das redondezas. Meu bairro era uma pequena aldeia e todos estavam conectados. Hoje estamos todos conectados globalmente e perdemos o contato pessoal com as pessoas próximas.
Pensando nisso, resolvi revisitar a mesma rua onde morei até os vinte e sete anos.  Era uma rua com pouco movimento e lá podíamos brincar de taco o dia inteiro sem o risco de passar um carro em velocidade. O taco era um tipo de basebol adaptado às circunstâncias e recursos disponíveis. Fui abrindo o livro da memória e resgatando os velhos tempos.  Naquela rua jogávamos também futebol com bolas de borracha, de couro ou feitas com meias. Trânsito só tinha mesmo nas ruas laterais, por onde transitavam os ônibus circulares. Algumas vezes os vizinhos reclamavam, principalmente quando uma bola caia nos quintais, quebrando plantas ou vidraças. A coisa ficava feia e num piscar de olhos a turma toda desaparecia. A rua ficava um deserto e somente no dia seguinte o pessoal aparecia e muito desconfiado.  Era difícil saber quem foi e por isso acabava ficando por isso mesmo. Mas para os vizinhos, os meninos mais pobres eram sempre os culpados. Como sempre, o preconceito de classe social fazia as suas vítimas.
Algumas calçadas ainda eram de terra e nelas fazíamos as biroscas ou buraquinhos para jogar bolinhas de vidro. Era uma alegria só. Os “patos”, jogadores muito ruins, perdiam todas as bolinhas compradas no armazém do seu Antônio. As brincadeiras tinham a sua época própria, obedecendo a uma sazonalidade que parecia programada. Eram épocas dos piões, das bolinhas de vidro, das pipas, da unha na mula e outras tantas. Quando chegava o verão e começava a escurecer o divertimento era pegar vagalumes e coloca-los em vidros. Era um luxo só ter um abajur de vagalumes.
Cada um dos nossos vizinhos tinha uma história diferente. Era uma rua quase internacional. Dona Maria, uma senhora polonesa, que todos chamavam de Maria Hungareza, era prima do papa João Paulo II conforme se descobriu tempos depois, e tinha o mesmo sobrenome, Woytila.  A Dona Ana, uma alemã, tinha uma filha bonitona, que era professora no grupo escolar, chamada Rasma. Tinha mais dois filhos, um deles o pobre Frederico, que tinha retardamento mental. Todos os meninos cresceram e foram ficando rapazinhos enquanto o Frederico só ficou grande, mas com a cabeça de uma criança. Corria entre as crianças menores para apanhar balões, disputando a tapas a primazia de apagar a tocha.  Ele sempre pegava os balões, pois tinha quase dois metros de altura.
Quase em frente de nossa casa morava o seu Affonso que trabalhava nas indústrias Matarazzo e nas horas vagas cortava o cabelo da criançada por um preço bem mais baixo do que nas barbearias do bairro. Enquanto cortava minhas madeixas gostava de conversar, principalmente pelo fato de que eu já estava no ginásio e por isso achava que eu já devia ter opiniões sobre tudo. Seu pai era um velhinho italiano, baixinho e roliço que adorava uma caninha. Saia de casa todos os dias e andava uns dois quarteirões para tomar uma branquinha. Voltava tropeçando na sombra. Seu Antônio era muito simpático e brincalhão com as crianças e todos nós o adotamos como o nono. Isso com direito a pedir-lhe a benção que ele adorava. Gostava de fazer charadas com as crianças como uma em que fazia uma afirmação sem vírgulas que mudava o sentido da frase: “Matar o rei não é pecado ou Matar o rei, não, é pecado”. Hoje eu me lembro muito bem que ele repetia sempre a mesma coisa e nós achávamos sempre graça. Uma vez ele me flagrou fazendo xixi atrás do muro de sua casa. Fiquei assustado, mas ele foi muito gentil e disse que fazia mal parar. “Pode continuar sossegado”, aconselhou no seu sotaque italiano. Numa outra vez um menino me chamou de f.d.p. e ele ouviu indignado. “Na Itália, chamar a mãe de alguém assim, dá cadeia”. Pode ser que era no seu tempo, final do século XIX, mas hoje os italianos...
Seu Antonio, o vizinho do lado, era um homem enorme que andava sempre de terno preto e muito quieto. Sua mulher, dona Iracema era uma mulher de pouco humor. Eles não tiveram filhos e por isso a pouca tolerância com crianças. Vieram de Osasco, na época uma pequena cidade no oeste da capital. Em seu quintal havia pessegueiros, ameixeira, amoreiras etc. que eram a delícia dos pássaros e da molecada. De vez em quando corríamos o sério risco de levar uma lambada entrando furtivamente em seu quintal para surrupiar umas ameixas amarelinhas. Tempos depois descobrimos que a Da. Iracema não era tão ruim como inicialmente pensava. Ela fazia um nhoque imbatível.
Outro vizinho chegado às caninhas era o seu Osvaldo, um santista que o meu irmão gostava de imitar e o fazia tão bem que confundia até os seus filhos. Uma vez, quando comprei o meu primeiro fusquinha, ele resolveu que precisava me ensinar algumas dicas para ser um bom motorista e acabou dando uma ralada em meu primeiro carrinho. Ele prometeu pagar o conserto, mas como quem tomava conta do dinheiro era sua mulher, fiquei a ver navios.
Na esquina morava uma família enorme, também de origem italiana. Eram quatro ou cinco filhas e dois filhos, com os quais travamos violentas brigas de pedras e lá se iam vidraças. As ruas não eram calçadas e a prefeitura para evitar atolamentos de veículos, colocava resíduos de siderúrgicas, que deixavam pedras pesadas e ponte agudas, um perigo quando acertava a cabeça de alguém. Aliás, a minha ainda conserva marcas de petardos atirados por algum desafeto.
Dona Frida, uma russa, professava o espiritismo e convidava os vizinhos para participaram da mesa branca. Minha mãe sempre ia, pois apesar de católica, gostava de transitar pela Umbanda e o Kardexismo. Uma vez fui com ela, pois estava com uns problemas de saúde e ela resolveu tentar a sorte antes de levar-me ao médico. Com meus doze anos, achei estranha cerimônia, bastante diferente dos rituais da igreja Católica. Havia um copo com água sobre a mesa com toalha branca e algumas velas acesas. A luz era apagada para criar um clima de paz para que os espíritos se comunicassem. Confesso que não vi nem senti nada. De repente, no meio do ritual, a Dona Amélia, que tinha um leve sotaque russo, começou a falar português com sotaque nordestino, depois mudou para um sotaque alemão. Minha mãe me explicou que ela era um cavalo que estava recebendo o espírito de alguém estrangeiro. Ora, pensei com meus botões: Por que não fala na língua de origem e não em português. Fiz a pergunta para minha mãe e ela mandou que eu calasse a boca, pois não entendia nada.
Nossos vizinhos dos fundos tinham filhos da mesma idade que a gente e por isso éramos mais próximos. Estávamos sempre brincando e íamos muito a casa deles. Uma vez eu e meu irmão mais novo dormimos lá, pois minha mãe estava internada por causa de uma cirurgia. Foi muito divertido e o pai deles seu Pepe, um mecânico, ensinou vários truques para mim. Vimos televisão até tarde da noite, coisa que nunca acontecia em casa, pois meu pai além de dormir cedo, pensava que se a televisão ficasse ligada por muito tempo daria problemas e despesas com o técnico. O filho mais velho deles, o Paulinho Cabeção, era assim chamado por ter a cabeça um pouco grande, mas era um bonachão e apesar de mais velho tinha comportamento de garotos de menos idade. Ele se divertia rodando um pneu de carro pelas ruas. Não conseguiu terminar a escola primária e teve dificuldades para trabalhar. Encontrei com ele na casa dos meus pais em 1995, quando meu pai estava se recuperando de uma pneumonia. Paulinho já era um senhor de cabelos muito brancos, bastante envelhecido para idade. Neste mesmo dia meu pai teve um enfarto e só saiu do hospital para a última viagem.
Outra vizinha, dona Itália, foi vítima de uma grande tragédia. Seu filho de 18 anos morreu afogado em uma represa em São Bernardo. Foi muito triste, pois era apenas um garoto. Ele saiu com uma turma para nadar e aconteceu o trágico acidente. Logo depois o seu marido morreu com câncer, que em casa se chamava doença ruim, ou aquela doença que ninguém gostava de falar o nome. Fui com meu pai visitá-lo uma vez. Era um senhor alegre e simpático que mesmo acamado sem poder andar, ainda fumava e dizia besteiras. Dona Itália, sua mulher chorou muito no velório. Gritava desesperada que os dois únicos homens de sua vida tinham partido. Ficou ela e a filha Marizilda, uma garota levada da breca, que era a valentona do bairro e batia até nos marmanjos. Como a mãe trabalhava fora, ela abria a casa e servia pão com manteiga e café com leite para toda a molecada. Ser amigo dela era uma proteção. Um dia ela resolveu ir para a nossa casa com toda a sua turma. Minha irmã mais velha acabou deixando, mas constrangida porque nossa mãe não gostava de crianças em nossa casa. No dia seguinte teve muitas palmadas e puxões de orelha, além das terríveis broncas. Ela só não contou para meu pai com medo de que ele ficasse muito furioso.  Mas a Dona Itália, tempos depois teve um caso com um rapaz solteirão, filho do marceneiro.  Ela bem mais velha do que ele e era muito ciumenta e ele chegado a um rabo de saia conforme se falava lá em casa. Um belo dia de sol apareceu uma moça bonita e elegante na esquina do armazém do seu Antonio e perguntou-me se eu conhecia o Alexandre. Claro que conheço, respondi prontamente. Então ela pediu-me que fosse dar um recado que ela muito queria falar com ele. Fui rapidinho até a casa do tal de Alexandre, que estava dormindo. Quando falei que uma moça estava querendo falar com ele, a Dona Itália ficou uma fera e saiu de chinelas para encontrar a rival. Foi o maior barraco. A moça, muito educada tentou contornar a situação, mas foi humilhada publicamente, com todos os impropérios que as mulheres ciumentas utilizam contra as suas rivais. Naquele dia aprendi novas palavras e tornei outras mais feias. Começou a juntar muita gente até que o Alexandre apareceu e apartou o que seria uma briga de fato. A moça foi embora e ele levou a mulher para casa.
E por falar em afogamentos, esses eram constantes na represa em São Bernardo e de vez em quando tínhamos notícias de novas tragédias. Um colega do grupo primário, o Mário Corvalan, também caiu na armadilha e morreu com 18 anos na mesma represa. Meu irmão Nelson quase foi vítima da mesma tragédia. Por sorte na segunda vez que subiu à superfície, um bombeiro conseguiu retirá-lo de lá. Outro menino, que estudava no mesmo colégio que eu, também foi vítima e este estava com apenas 16 anos.
Andando pela rua acabei lembrando também de um caso que quase virou uma tragédia. Dona Mariquinha, a mulher do padeiro, ficou furiosa com um menino que bateu em seu filho. Não foi nada de mais, mas o menino chorou pra burro.  Dona Mariquinha foi até onde o garoto estava e deu-lhe uns safanões para que aprendesse a nunca mais bater em seus filhos. A mãe do menino trabalhava numa fábrica até as dez da noite e no outro dia, sabendo da história pelos outros filhos, não teve dúvidas. Levantou-se cedo, colocou um punhal escondido no peito, mas que dava para ver um pedaço do cabo. Tirou o garoto da cama e o levou arrastado até a casa da vizinha. Ele não queria ir, principalmente porque ele havia molestado o garoto sem nenhum motivo e depois ficou seriamente com medo do que poderia acontecer. A molecada foi atrás da dona Custódia como uma procissão. Chegando à casa da dona Mariquinha, esta abriu a janela e tremeu igual uma vara verde. Dona Custódia com o filho puxado pela mão entrou na varanda da casa e bateu forte na porta. Dona Mariquinha saiu de camisola e pediu pelo amor de Deus que não batesse nela e que tivesse dó dos seus filhos. Dona Custódia mostrava o filho e falava: “Quero que tu bata nele agora! Vamos sua covarde, encoste um dedo nele que tu não vai ver mais seus filhos”. A mulher chorou desesperada e se ajoelhou nos pés da dona Custódia, uma gaucha valente que só vendo. Pessoalmente, acho que ela não ia fazer nada, mas quis impressionar e garantir que ninguém iria molestar seus filhos em sua ausência, já que eles ficavam sozinhos quase o dia inteiro.
Eu também protagonizei uma cena que ficou nos anais da memória dos velhos. Um garoto gordo e molengão chamado Rodil bateu em meu irmão mais novo. Não tive dúvidas, fui tirar satisfações com o grandalhão e apliquei-lhe uma gravata e uma rasteira e só ouvi o tombo do menino no chão. A mãe, uma senhora roliça, resolveu entrar na briga e acabou caindo no chão junto com o filho. Diante do inusitado, dei o fora, pois brigar com adultos era encrenca na certa. No dia seguinte ela estava em nossa porta para conversar com minha mãe. Dona Itanina pediu desculpas pelo que aconteceu, mas antes advertiu a senhora balofa que em briga de crianças, adultos não devem se envolver. Mas de qualquer forma levei uma surra bem dada com um velho cinto do papai, grosso, cruel e pesado, que deixou manchas vermelhas pelas pernas e na alma.
Nesta visita a minha rua e ao meu bairro, senti saudades dos velhos e distantes tempos de criança. As paixões de infância, como a Geni que era filha do guarda civil, depois a Mirian, filha de um amigo do papai e, finalmente, a Maria, minha vizinha do lado, fizeram-me lembrar que, naquela época, eu era bem volúvel em matéria de amor. Prédios deram lugar as casas dos antigo vizinhos e companheiros de infância. Nada é para sempre e na época não se pensava nisso. Parecia que o mundo seria sempre o mesmo.  O sol sempre quente e as peladas na rua que duravam eternamente. Virava depois de seis gols e acabava com doze e nas férias jogávamos várias partidas que só paravam quando o sol se punha no horizonte. Fizemos mais gols do que o Pelé e o Romário juntos, mas como não havia ninguém para registrar, caíram no esquecimento.

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