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STRANGE FRUIT E BILLIE HOLLIDAY

O filme “Billie Holiday contra o Estado” tem como tema a perseguição sofrida pela cantora de jazz pelo departamento de narcóticos do FBI nos anos 1940 e 1950. Billie era mesmo viciada em heroína, mas a perseguição tinha um foco mais pessoal, pois a cantora representava, aos olhos do Estado, uma ameaça à estabilidade política e social e o comissário tinha como objetivo maior, destruir a artista, pois sua voz tinha uma força, uma penetração muito grande entre os seus irmãos negros. Holiday, nascida em 1915, filha de pais adolescentes, teve uma infância trágica, pois com dez anos foi estuprada por um vizinho. Com catorze anos começa a se prostituir para sobreviver, mas é presa e passa quatro meses na prisão. Aos quinze anos começa a cantar em bares até ser descoberta. Para a polícia e o stablishment, a canção Strange Fruit era perigosa, pois poderia estimular a revolta. Revolta der quem? Obviamente dos negros massacrados pelo apartheid americano. Strange Fruit composta pelo professor judeu, Meeropol, era a metáfora dos linchamentos executados pela KKK nos estados sulistas e ignorados pela justiça. “As árvores do sul dão estranha fruta, sangue nas folhas e na raiz. Corpos negros balançando na brisa do sul. Fruta estranha pendurada nos choupos”. Quando cantava, a voz de Billie soava como um profundo lamento, como se estivesse vendo seus irmãos sendo executados por enforcamentos e deixados pendurados nas árvores na zona rural. Supõe-se que seu próprio pai havia sido linchado pelo ódio racial. A música não era tocada nas rádios, pois ninguém gostaria de ser acusado de comunista ou antiamericano. Nos seus shows o público pedia e muitas vezes ela cantava, pois sua dor era mais forte do que a perseguição. Teoricamente, ela não poderia ser presa por cantar a música, pois seria apenas uma contravenção penal. Entretanto, se fosse flagrada com drogas seria obviamente condenada e para isso o FBI se infiltrou no grupo da cantora para dar o flagrante. Algumas cenas do filme lembram a nossa ditadura, quando muitos artistas tinham suas músicas censuradas e proibidas de serem executadas no rádio e televisão, pois continham, mesmo por metáforas, críticas ao sistema. Eu mesmo assisti um show em que a voz do artista desapareceu quando iniciaram os primeiros acordes de uma canção censurada. A polícia estava presente e desligou o som no momento em que a canção seria executada. Os EUA viviam numa democracia, um governo do povo e para o povo, mas o povo eram apenas os brancos, pois os negros eram excluídos desses direitos. Existia na prática, uma ditadura racial, em que a “raça” que está no poder oprime as demais. Apenas no início dos anos 1960, os direitos civis são estendidos aos negros nos estados sulistas, onde ocorreu a escravidão. Em 1959, a maravilhosa cantora de jazz, Billie Holiday morre num hospital em Nova York, onde ficou presa por posse de drogas, certamente “plantadas” por agentes no seu leito de morte. Mas a canção interpretada divinamente pela bela voz de Billie Day ficou para sempre na memória do povo e foi incluída na lista das melhores canções do século XX. Strange Fruit é uma canção suave, intimista colocada sobre um poema de alguém que não quer ser explícito, direto e para isso usa de metáforas para expressar a revolta contra a injustiça e violência contra um povo. Os frutos das árvores sulistas que balançam contra a brisa que vem do Golfo do México, não eram doces e saborosos. Eram frutos amargos com sabor de sangue e corte. São frutos da dor de famílias que presenciavam impotentes, a execução de seus parentes pela supremacia branca. Billie deixou a vida e entrou para a história do seu povo como uma heroína que lutou apenas com sua voz e suas canções contra o medo e a opressão. Billie Holiday contra o Estado. Com Andra Day. Disponível na Primevideo.

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