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O BAURU DO GOUVEIA

Alguns sabores da vida a gente nunca esquece, principalmente aqueles da juventude. Não eram sabores sofisticados de bons restaurantes, mas coisas simples que matavam a fome no sábado ou domingo à noite depois dos programas bons e ruins. Na Vila Gerty, São Caetano do Sul, perto da Praça da Figueira, havia um bar simples, meio sujo, meio mal frequentado, mas que servia um bauru delicioso: o bar do Gouveia. A receita era simples: pão quente na chapa, mozarela, presunto, rodelas de tomate e um delicioso molho vinagrete à portuguesa que dava o toque final. Era de lamber os beiços.
O Bar do Gouveia era o típico bar da crônica do Antonio Prata sobre os bares simples e rústicos frequentados por gente meio intelectual, meio de esquerda, só que na minha época nunca conheci por lá alguém meio intelectual e meio de esquerda. O que existia mesmo era gente meio proletária, meio classe média baixa. Meio de esquerda, confesso que já fui e algumas vezes para lá arrastei meus amigos meio de esquerda que, como eu, liam Marx, Luckaz, Gramsci e Sartre sem entender muita coisa. Eles acharam o bar o máximo e um deles chegou ao requinte de considerá-lo como um típico bar “proleta” e bem porreta, como um excelente local para uma discussão sobre o que fazer após tomarmos o poder.  Outro, “especializado” em Trotski, e hoje ativista do movimento católico Canção Nova, chegou a propor que fosse designado para as reuniões clandestinas do seu grupo. O Alemão, bem mais relaxado, achou o bauru muito bom e estava mais interessado em forrar o estômago, sem se preocupar com política.  Mas como o pessoal era somente meio de esquerda ou mais propriamente falando, da esquerda festiva, o bar não alcançou o status de reduto revolucionário.
O Gouveia, um sisudo senhor português que de intelectual e de esquerda não tinha absolutamente nada, era de pouca conversa, mas caprichava no bauru e nos salgadinhos que servia.  Ouvia-se muitas histórias sobre o seu Gouveia, atribuídas a ele pela sua procedência lusitana. Verdadeiras ou não, divertia o pessoal durante o ritual gastronômico.  O bar era dividido entre um compartimento de “fast-cachaça” e o outro depois de uma divisória de madeira trançada onde eram servidos os quitutes em mesas de fórmica, sem toalha e sem nenhum charme. O que eu chamo de “fast-cachaça” é aquele serviço rápido em que o sujeito pede uma cachaça, jogo um pouco para o Santo e engole o resto num trago só, larga o dinheiro no balcão e continua andando até o próximo bar. Mas tinha o filho do Gouveia que quebrava o gelo, dando uma atenção especial para a turma. O Luís era da nossa idade e fazia algumas concessões, como uma fatia a mais de presunto ou mozarela. Era só pedir discretamente e ele, longe do olhar controlador do velho, fazia as pequenas liberalidades.
Outro ponto de final de noite em São Caetano do Sul, naqueles saudosos tempos de adolescência, era uma lanchonete que servia cachorro-quente com batatas fritas, daquelas industrializadas. Infelizmente não consegui lembrar o nome da lanchonete.  Com uma coca, um hot-dog e muita mostarda, a moçada enganava o estômago antes dormir. Mas ali era tipicamente classe média, onde rapazes e garotas frequentavam depois de uma sessão no Cine Lido, na Rua Manoel Coelho. O sabor do hot-dog não era dos melhores. Era um gosto sem graça que não deixou saudades como o bauru do Gouveia.
Hoje quem passa pela Praça da Figueira vai encontrar uma praça de verdade, pois nos anos sessenta era somente uma velha figueira cercada por um pequeno canteiro, onde o Jânio Quadros, Ademar de Barros e outros políticos fizeram seus discursos de campanha nos anos sessenta.  Em cima do bar do Gouveia havia um apartamento onde morava um amigo da época, o Douglas Leandrini, que não sei por onde anda e cujo pai era delegado no bairro e dono do prédio. Ele mesmo não frequentava o bar por motivos óbvios. Ao lado do bar funcionava o açougue do Belizário, filho de outro português que tinha um belíssimo Chevrolet Belair que só saia da garagem para dar uma voltinha no bairro.
O prédio foi demolido e apesar da boa urbanização do local com uma praça com bancos e árvores o local perdeu o seu charme, sem os deliciosos baurus e aqueles papos alienados de adolescentes. O Brasil da época vivia numa ditadura cruel que a maioria das pessoas nem percebia. O Brasil de hoje mudou muito, mais democrático, mas mais violento e cada vez mais corrupto. Hoje eu teria receio de passar a pé por ali de madrugada como era hábito na época. Mas se o Gouveia ainda funcionasse, imagino que seria uma loucura conseguir uma vaga para estacionar e saborear o delicioso bauru. Com certeza o bar estaria reformado e teria perdido definitivamente o jeito de bar simples, meio proletário e meio classe média.

Comentários

  1. Querido mestre Renato!

    Fez-me recordar do bar do Guilherme, na avenida Queiroz Filho, Santo andré.
    Voltávamos do ginásio, do colegial, mesmo da faculdade e íamos comer bauru. O Guilherme, portuga trasmontino tem tudo a ver com o gouveia. O que nos atraía, além do sabor do seu sanduíche eram as desprendidas dimensões. Grande mesmo. E o encontro com comensais da mesma idade, garotas, muitas. Todo mundo chegava às dez e meia e às onze não havia mais ninguém. Todos estudantes e trabalhadores. Prezadores do bom sono.

    Não sei se o Guilherme ainda é vivo e se o bar ainda existe.
    O que tenho certeza que está igualzinha é a lembraça.

    Abração, velho Renato.
    Mande-nos mais.

    Abração,

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  2. Meu querido cronista Renato Ladeia. Gostei muito da crônica que me levou saudosamente a lugares que eu nem freqüentei ou conheci. Talvez pelo fato de que aqui em Santo André também tínhamos alguns, destacando – se o Bar do Bonito, Padaria Central onde os amigos se encontravam para inicio ou fim das noitadas. Até quando surgiu o Bar Samambaia onde se reuniam muitos músicos, compositores, poetas etc. Um grande abraço



    Sinésio Dozzi Tezza

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