Pular para o conteúdo principal

O GOSTINHO DO INTERIOR

O gostinho das coisas do interior faz parte da vida daqueles que deixam a vida bucólica dos sítios e fazendas e vão para as cidades encontrar novas oportunidades de vida. Muitos trazem nas mudanças algumas latas de doces caseiros, de queijo meia cura, um pouco de café em grão e vai por ai. Além de tudo, carregam também a saudade dos amigos, dos bichos, dos passarinhos cantando de madrugada e outras lembranças que permanecem por toda a nossa viagem por este planeta.
Quando se recebe a visita de alguém da terrinha, é inevitável que o visitante traga umas encomendas. Visitar alguém da cidade e ir de mãos vazias é um sacrilégio imperdoável. Conheci uma pessoa que deixava para comprar uma lembrancinha em algum lugar próximo da estação ou rodoviária. Numa dessas comprou um queijo meia cura que não era da cidade mineira de onde vinha, mas do interior de São Paulo. Pois é, desculpou-se dizendo que foi enganado lá mesmo. “São os tempos! Não se pode confiar em ninguém e o sujeito me garantiu que era da terra”, defendeu-se pouco a vontade ao ser flagrada a etiqueta embaixo do produto.
Lá em casa as coisas funcionavam como um posto avançado do interior. Nossos parentes lá da Noroeste Paulista despachavam religiosamente frangos, porquinhos, frutas, café, arroz e feijão. As encomendas vinham pela ferrovia e um telegrama anunciava a data do despacho e da chegada. Chegando, pagava-se um carreto e a mercadoria estava em casa. O bom mesmo eram as iguarias que vinham em mãos pelos parentes, como queijos e o famoso doce de leite coalhado, uma delícia.
Nossa casa tinha um bom quintal, onde eram criadas as galinhas e um porquinho que era anualmente sacrificado para o deleite dos apreciadores da carne suína. O dia do sacrifício era terrível, pois a criançada acabava gostando do bichinho, apesar do trabalho que dava em alimentá-lo e lavar diariamente o chiqueiro para evitar reclamações dos vizinhos.  Meu pai convidava uns amigos, preparavam o fogo, afiavam um punhal e o coitadinho era sangrado de acordo com os padrões judaicos, mesmo que não soubessem. Do porco se tirava tudo, menos o gemido de dor.  Parte da carne era repartida com os vizinhos mais chegados. Do restante fazia-se linguiça, toucinho defumado, chouriço, torresmo, carne cozida que era conservada na banha coalhada em latas, um antigo sistema trazido pelos europeus.
O café era um capítulo a parte. Recebíamos um saco de sessenta quilos de café in natura que era torrado aos poucos e moído quase que diariamente para preservar o sabor. O café torrado em casa tinha outro paladar, muito diferente do comprado nos mercados. Mesmo os cafés mais sofisticados de hoje, não conseguem igualar aquele sabor do café que vinha lá da fazenda. Era diferente, talvez torrado um pouquinho a mais, mas era um processo bem artesanal que lhe dava um toque especial.  Há que confessar que o trabalho de torrar e moer que recaia sobre as crianças não era nada agradável. Como as meninas se ocupavam de arrumar a casa e ajudar na cozinha, o café acabava ficando por minha conta, que lamentava quando era época de colheita de café. A fazenda era de um tio que plantava café em quase metade do seu grande latifúndio. Quando ia para lá nas férias, adorava passear pelo cafezal e chupar as doces frutinhas vermelhas.  Na época da colheita era um movimento e tanto na fazenda. O café era carregado até os terreiros onde era espalhado para a secagem antes de ir para o beneficiamento.  Para o consumo interno era socado mesmo no pilão para tirar a casca e depois torrado de forma artesanal.
Mas hoje está tudo muito diferente, principalmente no interior. Numa visita à fazenda de um primo, descobri que eles abandonaram há tempos a vida artesanal. Fazer queijo, manteiga e pão são coisas antiquadas, dos velhos tempos do atraso, das carroças. De nada adiantou o meu discurso sobre a sustentabilidade, expressão da moda entre aqueles que são preocupados com a poluição, lixo e esgotamento dos recursos naturais.  Agora é tudo comprado no supermercado e ninguém se preocupa em ir até duas vezes por dia à cidade para fazer compras. Quando perguntei pelo cafezinho torrado e moído em casa, foi uma sonora gargalhada acompanhada da emblemática frase: “Depois dizem que nós somos caipiras”.

Renato Ladeia

Comentários

  1. Obrigado pelo gostinho do interior, Renato. Eu trago no sangue essas coisas da roça. É bom ver outrem comungando das mesmas ideias e modos de sentir a vida.
    Abraços.

    ResponderExcluir
  2. É gostoso lembrar essas coisas, mas tenho a impressão de que estão ligadas apenas à nossa geração.
    Abraços e obrigado pela leitura.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

FLORAS E FLORADAS

Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome. Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o tempo
O DESAPARECIMENTO DE SULAMITA SCAQUETTI PINTO E já se foram sete anos que a Sulamita Scaquetti Pinto desapareceu. Não se sabe se ela estava triste, se estava alegre ou simplesmente estava sensível como diria Cecilia Meirelles.  Ia buscar o filho na escola e foi levada por outros caminhos até hoje desconhecidos. Ninguém sabe se perdeu o rumo, a memória, razão ou a vida. Simplesmente, a moça bonita, de belos olhos azuis nunca mais foi vista.          Os pais, os amigos e os parentes saíram pelas ruas perguntando a quem passava, mostrando a fotografia, mas ninguém viu. Alguns diziam que viram, mas não viram ou apenas acharam que era ela, mas não era. Participamos dessas desventuras quando tiveram notícias de que uma moça com a descrição da Sula havia aparecido num bairro distante. Era triste ver os pais desesperados por uma notícia da filha, com uma fotografia na mão, lembrando da tatuagem nas costas, dos cabelos loiros, dos olhos azuis, mas como de outras vezes, voltaram de mã