Pular para o conteúdo principal

A CAMISA VERDE

A saia verde de minha mãe enroscou em uma cerca lá de casa e ela ficou desconsolada, pois gostava muito da peça. Era um linho verde de boa qualidade e muito bonito. Mas como ela era uma mulher muito prática, olhou bem para a saia e pensou na melhor forma de aproveitá-la. “Vou fazer uma camisa para você”. Achei o máximo ter uma camisa verde e aceitei de cara o presente. Como ela mesma sabia costurar combinamos qual seria o modelo. Depois de pronta, pensei eu, poderia fazer inveja aos meus colegas palmeirenses, apesar de ser, na época, um fanático corintiano.
A camisa ficou tão supimpa que no dia seguinte, resolvi usá-la para ir à escola. Na época, no segundo ano primário, minha professora era muito rígida e furiosa. Ela usava um ponteiro de madeira com o qual batia nas cabeças e mãos dos alunos indisciplinados. Às vezes, em ataques de fúria, jogava até o sapato sobre as indefesas crianças. A escola era pública e da periferia de São Caetano do Sul e não havia a obrigatoriedade de utilização de uniforme, mas ela fazia questão de que todos os alunos viessem de camisa branca e calça azul.
Não deu outra. A professora colocou a classe em fila e viu aquela camisa verde exuberante contrastando com as brancas dos demais os meninos. Ela teve um choque. Tirou-me da fila e despachou-me imediatamente para casa.
Com oito anos de idade, achei o máximo ir para casa por culpa e graça da professora. Já fazia planos para jogar futebol ou caçar passarinhos, quando encontrei minha mãe no portão, espantada ao ver-me. Depois das explicações ela não teve dúvidas. Pegou-me pela mão e lá fui eu de volta à escola.
Minha mãe era decidida e corajosa. Entrou na sala da diretora e passou-lhe um sermão que provavelmente ela nunca mais esqueceu, de tão contundente. Dona Rosa assustada chamou imediatamente a professora e ordenou que eu entrasse na sala de camisa verde e tudo. Entrei constrangido e a professora muito mais. Eu havia desconstruído a sua tentativa de padronizar a vestimenta das crianças. Ela sentiu-se humilhada ao ver na classe uma camisa verde, destoando da maioria. Ela deu a aula como se eu não existisse e em nenhum momento olhou em minha direção.
A história não ficou só nisso. Semanalmente, minha mãe me obrigava a ir de verde para a escola, mesmo que eu tivesse camisas brancas limpas e passadas. Isso foi minando a autoridade da dona Carmem, que aos poucos foi relaxando a sua determinação de padronizar a vestimenta dos alunos e não mais obrigou as crianças a usarem camisas brancas.
Assim, aos oito anos, com o apoio da minha mãe, comecei a abalar as estruturas sociais. A professora, de tão arrasada, pediu transferência no ano seguinte e a comunidade se livrou de uma educadora colérica e violenta que não respeitava os direitos das crianças.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FLORAS E FLORADAS

Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome. Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o tempo
O DESAPARECIMENTO DE SULAMITA SCAQUETTI PINTO E já se foram sete anos que a Sulamita Scaquetti Pinto desapareceu. Não se sabe se ela estava triste, se estava alegre ou simplesmente estava sensível como diria Cecilia Meirelles.  Ia buscar o filho na escola e foi levada por outros caminhos até hoje desconhecidos. Ninguém sabe se perdeu o rumo, a memória, razão ou a vida. Simplesmente, a moça bonita, de belos olhos azuis nunca mais foi vista.          Os pais, os amigos e os parentes saíram pelas ruas perguntando a quem passava, mostrando a fotografia, mas ninguém viu. Alguns diziam que viram, mas não viram ou apenas acharam que era ela, mas não era. Participamos dessas desventuras quando tiveram notícias de que uma moça com a descrição da Sula havia aparecido num bairro distante. Era triste ver os pais desesperados por uma notícia da filha, com uma fotografia na mão, lembrando da tatuagem nas costas, dos cabelos loiros, dos olhos azuis, mas como de outras vezes, voltaram de mã