Pular para o conteúdo principal

OS LIVROS




Um velho amigo, dos tempos de faculdade, contou-me desconsolado que vendera seus livros a um sebo por uma merreca. Fiquei espantado com o inusitado do fato e toparia até comprá-los, caso me oferecesse a relíquia. Mas era tarde demais e só me restou, como consolo, ouví-lo contar sobre a triste separação.

Depois de contemplar seus livros durante horas, lembrando os bons momentos em que estiveram juntos debatendo idéias, criticando e anotando. Alguns deles até lembrou-se do momento da compra, outros foram apropriados, sorrateiramente, nos tempos de estudante, outros presenteados por amigos e parentes. Tudo parecia distante e frio, pois já não sentia mais aquele amor devotado aos livros que aprendera a cultivar durante longos anos. Quantas vezes perdeu a paciência com pessoas mal educadas que dobravam as páginas dos livros ou rasgavam as páginas ou as capas!

Mas já tinha tomado a decisão de vendê-los e ninguém, nada, iria demovê-lo. O primeiro comprador ofereceu um preço apenas razoável, mas pediu o parcelamento do valor. O segundo, apesar do preço mais baixo, pagava a vista. O valor da venda era ridículo perto do valor sentimental, material e intelectual das brochuras. Mais de dois mil livros e só ofereciam cinqüenta centavos para cada um. Uma miséria, menos de sessenta vezes o valor médio de um livro novo. Infelizmente o apartamento era pequeno e não havia mais espaço para acomodá-los. Acumulava poeira e praticamente não tinha mais contato com eles. Há muito, abandonara suas posições políticas e intelectualmente radicais. “Esqueçam o que eu li”, brincava ele, parodiando o intelectual presidente que pedia para esquecerem o que ele havia escrito. O mundo em que acreditou desmoronava-se. As experiências socialistas estavam enterradas, talvez para sempre. Sentia-se cada vez mais anacrônico e deixou de defender antigas posições. Sentia-se envelhecido Ele que sempre foi muito respeitado por suas convicções e honestidade intelectual, lendo com visão crítica tudo que caia em suas mãos, pendurou as chuteiras.

Mas agora, pensava, de que adiantava esses livros todos, acumulando poeira, ocupando espaços preciosos do pequeno apartamento. Provavelmente nunca mais fosse lê-los com interesse. Alguns deles, há anos, não eram sequer tocados. Vendê-los a um sebo seria um sacrilégio, mas não restava alternativa. Quem sabe algum amigo ou conhecido passasse por um desses “sucateiros da cultura” e, ao comprar um livro, reconhecesse a caligrafia cuidadosa nas anotações nas margens e rodapés. Até que seria interessante, chegou a pensar. Talvez esse amigo pudesse imaginar que já estivesse morto ou então numa pindaíba tão grande que precisou até vender as velhas brochuras. Pode ser que esse amigo, depois de comprar um dos livros em um sebo qualquer, poderia até fazer um telefonema e relembrar os velhos tempos de juventude.

Mas o comprador chegou, e sem demora, sob a orientação da sua mulher, foi encaixotando todos eles sem nenhuma consideração especial. Meros papéis... Foram várias viagens até encerrar o carregamento. Deixou um cheque e despediu-se como se tivesse comprado algumas caixas de ferro velho. Nenhuma palavra de consolo para aquele que estava se desfazendo de parte de sua vida, de suas lembranças, de suas utopias. Sentou-se, apoiou as mãos sobre a bengala e chorou, como uma criança.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FLORAS E FLORADAS

Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome. Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o tempo
O DESAPARECIMENTO DE SULAMITA SCAQUETTI PINTO E já se foram sete anos que a Sulamita Scaquetti Pinto desapareceu. Não se sabe se ela estava triste, se estava alegre ou simplesmente estava sensível como diria Cecilia Meirelles.  Ia buscar o filho na escola e foi levada por outros caminhos até hoje desconhecidos. Ninguém sabe se perdeu o rumo, a memória, razão ou a vida. Simplesmente, a moça bonita, de belos olhos azuis nunca mais foi vista.          Os pais, os amigos e os parentes saíram pelas ruas perguntando a quem passava, mostrando a fotografia, mas ninguém viu. Alguns diziam que viram, mas não viram ou apenas acharam que era ela, mas não era. Participamos dessas desventuras quando tiveram notícias de que uma moça com a descrição da Sula havia aparecido num bairro distante. Era triste ver os pais desesperados por uma notícia da filha, com uma fotografia na mão, lembrando da tatuagem nas costas, dos cabelos loiros, dos olhos azuis, mas como de outras vezes, voltaram de mã