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JUNIA COSTA, A MOÇA QUE DEIXOU UM VIOLÃO LÁ EM CASA



JUNIA COSTA, A MOÇA QUE DEIXOU UM VIOLÃO LÁ EM CASA


Um dia desses, arrumando as coisas em casa, encontrei um velho violão Gianini todo empoeirado e comecei a pensar na sua história. Foi uma moça, lá das Minas Gerais, mais precisamente de “Belzonte”, como ela chamava a capital do estado, que o deixou aqui. Não sei se ela gostava ou não do violão, mas parece que foi coisa do passado, quando ainda era muito jovem e estudante. Depois de formada o violão foi ficando meio de lado e acabou esquecido, propositalmente por aqui. Quando ela mudou-se para outras plagas, perguntamos:
- E o violão, não vai levar?”
- Acho que não vou não. Eu gostaria de deixá-lo aqui. Vocês se incomodam?
Claro que a gente não ia se incomodar. Mesmo tendo o nosso, um violão a mais nunca seria demais, pois às vezes aparecia mais de um músico para os nossos animados saraus. Depois, um violão é um objeto que tem vida. Não é um vaso, um móvel. As pessoas tocam belas canções e com eles passamos bons momentos de nossas vidas com nossos amigos. Enfim, um violão sempre tem muitas, muitas histórias para contar. Se fosse um ser vivo, estaria lembrando-se das mãos leves, suaves, femininas, ou mãos pesadas, ásperas, mas sempre sensíveis e inspiradas que dedilharam as suas cordas. Isso me faz lembrar aquela linda canção do Cartola:
Ah! Essas cordas de aço
Este minúsculo braço
Do violão que os dedos meus acariciam
Ah, esse bojo perfeito
Que trago junto ao meu peito...

E a moça do violão partiu, foi para a Europa e lá se enfiou em um cantinho qualquer e tocou a sua vida. Casou e com muito esforço conseguiu autorização para exercer a profissão de médica em um país nórdico, o que não é fácil não. Sempre nos lembramos dela em vários momentos. Um deles foi numa fria manhã de junho. Ela estava no portão desesperada, com a porta do carro aberta e um cão atropelado sobre o banco traseiro. No primeiro momento pensamos que era uma pessoa ferida. Depois ela foi se acalmando e explicando que tinha visto o atropelamento do cão e resolveu socorrê-lo. Como não conhecia nenhum veterinário, resolveu bater em nossa porta para ajudá-la. E a história não terminou por aí. Depois de constatado que o cão não teria mais recuperação, pagou as despesas para o sacrifício e o enterro do animal e ainda foi procurar o dono para comunicá-lo. Pobrezinha! A primeira coisa que o dono do cão queria saber é se teria de pagar alguma coisa e nem perguntou o que havia acontecido com o pobre cão.
Ela adorava os nossos cães e mal sabíamos se quando nos visitava era por nossa causa ou por eles, tanto era o afeto que demonstrava para com os bichos. Brincadeiras a parte, ela era (e continua sendo), uma pessoa doce e amável. Nós a tratávamos como uma irmã mais jovem e algumas vezes até com umas broncas para colocá-la nos eixos.
Numa outra ocasião, socorreu nossa filha em um pequeno, mas sério acidente doméstico. Ela fez um trabalho primoroso de reconstituição de um dedo macerado em uma cadeira de armar e praticamente sem recursos em um hospital público.
A última vez que a vimos foi no aeroporto, quando voltava de BH depois de uma rápida visita ao Brasil para o enterro, não de uma pessoa, mas de uma cadelinha que deixou com sua mãe.
Depois de uma desilusão amorosa ela conheceu o Thomas, um dinamarquês que eu apelidei de Hamlet. O “Hamlet”, diferentemente do personagem de Shakespeare, nunca me pareceu muito preocupado com questões existenciais. É uma pessoa doce e gentil que adora cães, gatos e companhia. E foi esse quase personagem que arrebatou para sempre o coração desta médica mineira que cantava bossa-nova deixando o Brasil mais pobre e com menos poesia.
Mas o velho Gianini continua por aqui e foi nele que a Mariane compôs algumas de suas canções como: Gente Média, Café Luá, Vai virar, Melhor parar, entre tantas outras. De vez em quando também aparece o Zéca, um dos maiores conhecedores de sambas desde Noel até os nossos dias e o maestro Orlando Marcus Mancini, também um dos maiores conhecedores da MPB, que despertam a alma do velho pinho em inesquecíveis noitadas.
Enquanto ela não volta para apanhar o seu pinho, ele vai ficando por aqui, saudoso de sua dona que tal vez já tenha se esquecido do português e o que dirá da bossa-nova.

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