Pular para o conteúdo principal

Histórias de Piedade (II)

Dedo estava em novas atividades no banco. Agora era um inspetor de financiamento rural e seu trabalho consistia em visitar os clientes do banco para verificar se estavam aplicando corretamente os recursos. Pegou a pastinha com a relação dos clientes a serem visitados, subiu na motocicleta e saiu para mais um dia de trabalho. As estradas vicinais são difíceis, mal conservadas e sem nenhum tipo de sinalização ou indicação. Para localizar as pessoas nos sítios era preciso ir perguntando para quem encontrava pelo caminho. Muitos dos clientes são conhecidos por apelidos, o que torna a tarefa ainda mais difícil. Um tal de Antonio José dos Santos foi muito difícil de achar. Ninguém conhecia o homem até que um senhor se lembrou e disse:
- Deve ser o Toto do Titico. Ele mora lá em riba.
Chegando lá encontrou uma senhora de meia idade varrendo o quintal em frente a casa. Estava tão concentrada em seu trabalho que nem percebeu a moto chegar. Ela parou de varrer e apoiando as mãos na vassoura cumprimentou o visitante.
- Bom dia!
- Bom dia, minha senhora! É aqui que mora o senhor Antonio João dos Santos?
- Não senhor, aqui não mora não...
- Será que eu me enganei? Um senhor da venda me disse que ele mora aqui, disse o Dedo surpreso com a resposta.
- Não... não conheço não; repetiu a senhora.
- Me falaram que o apelido dele é Toto do Ti...
- Ah! É o Toto do Titico, filho meu moço! Respondeu a senhora surpresa.
- Mas como? A senhora não sabe o nome do seu filho? Disse o Dedo espantado e sorrindo para não deixá-la constrangida.
- Ah! Nois aqui não se trata pela assinatura não moço. Respondeu a senhora calmamente apoiando o queixo no cabo da vassoura.
Depois de resolvido o problema, o Dedo pegou a moto e foi pensando no episódio. Ele se lembrou do livro Parceiros do Rio Bonito, escrito pelo Antonio Cândido, com base numa pesquisa na região próxima de Piedade nos anos 1940. No livro, Antonio Cândido, faz referência ao hábito da população rural não usar os nomes de registro. Ele cita um tal de Roque Lameu, que depois descobriu se tratar de Roque Antonio da Rocha que era neto de Bartolomeu da Rocha, que no linguajar caipira era Berto Lameu. Naquela época as relações eram bem informais, dispensando documentos, nomes próprios etc. Assim, bastava a palavra ou um fio de bigode que um negócio estava garantido, sem a necessidade de documentos.
Os nomes passados em cartório é procedimento recente no Brasil. O registro civil para casamentos e nascimentos só chegou em nossa terra com a proclamação da república e isso muito lentamente. Até então, a única prova de nascimento era o assento de batismo, isto é, quando a pessoa era batizada. Sabe-se que no Portugal medieval não havia sobrenomes, que só apareceram aos poucos com a utilização de apelidos de antepassados em função de profissões, topônimos, relações de dependência etc. A patronímia, ou seja, a utilização do nome do genitor continuou aqui no Brasil. Isso explica o caso do Toto (apelido de Antonio) do Titico (que poderia ser seu pai, seu avô ou mesmo o sogro).
Assim, na vida simples do interior, onde as relações pessoais não dependem de status ou identidades marcadas pelo sobrenome de família, as pessoas dão pouca importância a isso. Diferentemente dos povos europeus, aqui no Brasil, as pessoas não são denominadas pelos nomes de família, mas pelo pré-nome. Como escreveu Sergio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil, preferimos o tratamento mais informal, que revela uma intimidade que muitas vezes não temos com as pessoas. O José de Souza para nós não é o Sr. Souza, mas simplesmente o Zé ou Zezinho. É o nosso jeito, mesmo nas cidades em que as pessoas conhecem as “assinaturas”.

Renato Ladeia

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FLORAS E FLORADAS

Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome. Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o tempo
O DESAPARECIMENTO DE SULAMITA SCAQUETTI PINTO E já se foram sete anos que a Sulamita Scaquetti Pinto desapareceu. Não se sabe se ela estava triste, se estava alegre ou simplesmente estava sensível como diria Cecilia Meirelles.  Ia buscar o filho na escola e foi levada por outros caminhos até hoje desconhecidos. Ninguém sabe se perdeu o rumo, a memória, razão ou a vida. Simplesmente, a moça bonita, de belos olhos azuis nunca mais foi vista.          Os pais, os amigos e os parentes saíram pelas ruas perguntando a quem passava, mostrando a fotografia, mas ninguém viu. Alguns diziam que viram, mas não viram ou apenas acharam que era ela, mas não era. Participamos dessas desventuras quando tiveram notícias de que uma moça com a descrição da Sula havia aparecido num bairro distante. Era triste ver os pais desesperados por uma notícia da filha, com uma fotografia na mão, lembrando da tatuagem nas costas, dos cabelos loiros, dos olhos azuis, mas como de outras vezes, voltaram de mã