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MANAUS E O ENCONTRO DAS ÁGUAS

Por hoje e talvez por amanhã também, nada será tão poético para mim como a expressão: o encontro das águas. Águas que vêm do sem-fim das Américas, das águas do degelo dos Andes, que vêm arrastando paus, pedras, vidas, flores, dores, amores por onde passam e de repente se encontram com outras águas, águas escurecidas, que vêm do norte, do sem fim do lado de lá do Equador. E foi isso que eu vi, com esses olhos que um dia a terra há de devorar que as águas do Solimões e as águas do Rio Negro se abraçam num enlace amoroso e permanente até chegar ao mar.
Uma simpática senhora manauense me perguntou se era realmente verdade que das margens do Rio Negro seria possível mesmo ver o encontro das águas. A verdade está no olhar de cada um. O poeta finge que vê e que também não vê. Enquanto isso, o rio arrasta suas águas indefinidamente até o final dos tempos. O físico e quase poeta Stephen Hawking disse que o universo em expansão um dia faria o caminho inverso até o nada. Voltaríamos todos até o óvulo e além dele, aos abraços, ao amor. Infelizmente ele voltou atrás para dizer que o tempo era a única coisa permanente, que não volta nunca mais.
José Luiz, que no fundo de sua alma é um poeta, avisou que ir a Manaus sem ver o encontro das águas é um pecado mortal. Ele nasceu olhando o rio desde os olhos de sua mãe e, até hoje, continua sonhando com ele. Tomando cerveja e saboreando um peixe do rio e olhando para as águas ele disse que não havia coisa mais bonita do que o por do sol no Rio Negro. Percebi que ele sonhava com o seu rio, como o João Valentão da inesquecível canção do Dorival Caymmi que também sonhava com o mar da Bahia. “E assim adormece esse homem, que nunca precisa dormir, pra sonhar, porque não há sonho mais lindo, do que sua terra, não há”.
O rio é sempre uma forte presença na cultura humana. Quem poderia pensar em Paris sem se lembrar do velho e poluído Sena ou de Londres sem o seu quase restaurado Tamisa. E o que seria do Fernando Pessoa sem o Tejo? “O Tejo é o mais belo rio que corre pela minha aldeia/ Mas o Tejo não é mais belo do que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”. O nosso bardo e poeta Caetano Velloso também imortalizou o rio que passava em sua pequena Santo Amaro com os belos versos: “Onde eu nasci passa um rio/ que deságua num igual sem fim/ igual sem fim minha terra/ passava dentro de mim”.
É por isso que invejo os manauaras, porque eles têm um enorme rio, um rio que às vezes a vista não alcança. Um rio que corre silencioso e sem pressa para o seu encontro com o Solimões e com o mar. Um rio colorido pelos barcos que se preparam para as festas de Parintins. Os barcos parecem ensaiar seus passos de dança, enfeitados por fitas coloridas que criam um belo contraste com a sujeira do cais. Eu olho inseguro para aquele povo que não conheço. São olhares índios e mestiços que estão atentos aos movimentos dos barcos e aos passantes. Sigo o Vitangelo, um italiano que adotou a Amazônia e que é meu guia nessa misteriosa, ameaçadora e selvagemente bela cidade. Como seu patrício que descobriu a América, ele desvendou aos poucos os encantos do rio, do porto, dos becos me guiando soberbo pela Manaus que um dia sonhou ser uma Paris às margens do rio Negro. Avistamos o teatro que o meu imaginário construiu bem maior. Enquanto meu guia me contava sobre os áureos tempos da febre da borracha, eu via fantasmas vestidos de ternos de linho branco e chapéus panamá, acompanhados por elegantes senhoras em direção ao teatro para assistirem a mais um espetáculo de ópera.
Mas o tempo é curto e tristemente me despeço de Manaus e dos rios por um derradeiro olhar que até pouco tempo era um privilégio apenas de Deus. Mas, por sorte, os homens criaram os aviões contrariando a vontade divina e nós, pobres mortais, podemos ver o mundo com o mesmo olhar de um criador ao concluir sua obra.

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