Pular para o conteúdo principal

NOÊMIA MOSCARDI

Passava um pouco apressado pela rua Tenente Antonio Alves, no bairro da Saúde e lembrei-me de velhos tempos. Tempos sombrios, é verdade. Estávamos em plena ditadura militar, mas isso não alterava o humor da maioria das pessoas. Os conscientes da situação pintavam o mundo de forma arrasadora, prevendo o caos que nunca chegaria. Os inconscientes ou alienados como eram chamados de acordo com o jargão da época, pouco se lixavam com a situação. Enfim, entre alienados e conscientes, o tempo passava morno e indiferente.
Essas lembranças me fizeram parar o carro e olhar para uma casa simples, com aspecto de abandono, com folhas secas espalhadas pelo quintal. Ali moravam a dona Noêmia e o seu Joanin. Entrei no túnel do tempo e divaguei em direção a casa. Lá estava a pequena horta cultivada com carinho pela dona da casa. Na verdade, se é que me lembro mesmo, era um pouco de jardim misturado com horta. No canteiro havia flores que se misturavam às pimentas, ao cheiro verde, pimentão e outras hortaliças. Aquilo tudo era motivo de orgulho para a dona da casa, que utilizava esses produtos para incrementar sua cozinha ou para oferecer aos amigos e parentes. Aliás, diga-se de passagem, ela cozinhava muito bem. Lembro-me saudoso das deliciosas lasanhas, tortas, assados e bolos que ela preparava com carinho, não somente para a família, mas também para os amigos do seu filho, que eram sempre bem recebidos com alguns quitutes, regados com o tradicional cafezinho. Ela sentia um prazer encantador em saciar o apetite de todos que por lá passavam.
Mas a viagem no tunel do tempo não para por aí. No ano novo ou Natal lá estava a turma em peso na casa dos Moscardi, onde varávamos a noite sob o som de bons sambas, chorinhos e outras bossas. A dona Noêmia, sempre atenciosa, abastecia o pessoal com seus quitutes, sempre deliciosos, e as imprescindíveis cervejas. O Joanin, que quase ganhou fama, nos seus bons tempos, como ponta direita do Palestra Itália, com seu jeitão carrancudo, deixava a festa correr e só pedia para o pessoal fechar a porta quando alguém fosse embora. Ele se retirava para o seu quarto e em pouco tempo ouvia-se seu ronco sonoro que se misturava aos sons dos violões, cavacos, flauta e pandeiros.
Tempos depois, já casado, sempre recebíamos o convite do Jorge, filho do casal, para filar um almoço dominical na casa da mama, o que fazíamos com grande prazer, não somente pelas delícias que ela preparava, como também pela sua presença alegre e simpática. “Fiz só umas coisinhas simples, não vão reparar!” Era sempre modesta ao falar dos saborosos pratos que preparava e servia com alegria. Durante o almoço, o silêncio era sempre quebrado pelo Joanin, que reclamava da ingratidão do filho com a mama: “ Ele sai por ai e não avisa e deixa essa pobre aí preocupada, sem dormir”, dizia apontando o dedo indicador curvado para a dona Noêmia. Ela ficava em silêncio e esboçava um leve sorriso, como da Monalisa.
O tempo foi passando e aos poucos fomos perdendo o contato. Sempre quando passava por ali, sentia uma vontade danada de tocar a campainha e tomar um café gostoso, passado na hora, acompanhado de um pedaço de torta que só ela sabia fazer. Qualquer dia eu paro, mesmo que chegue atrasado no trabalho, pensei inúmeras vezes. Qual o que! A vida tem sido muito corrida e não temos tempo para as coisas realmente boas da vida e nunca encontramos tempo para nada.
Um dia desses tomamos uma decisão: visitar a dona Noêmia e o seu Joanin. Pegamos o novo endereço, compramos um ramalhete de rosas, as flores que ela mais gostava, e nos preparamos para fazer a visita. Infelizmente ela estava internada com problemas de saúde e a visita precisou ser adiada. As flores ficaram alguns dias no vaso, mas o tempo foi cruel com elas como foi com a querida Noêmia, que nos deixou, leve e suave, como sempre foi.

Renato Ladeia

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FLORAS E FLORADAS

Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome. Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o tempo
O DESAPARECIMENTO DE SULAMITA SCAQUETTI PINTO E já se foram sete anos que a Sulamita Scaquetti Pinto desapareceu. Não se sabe se ela estava triste, se estava alegre ou simplesmente estava sensível como diria Cecilia Meirelles.  Ia buscar o filho na escola e foi levada por outros caminhos até hoje desconhecidos. Ninguém sabe se perdeu o rumo, a memória, razão ou a vida. Simplesmente, a moça bonita, de belos olhos azuis nunca mais foi vista.          Os pais, os amigos e os parentes saíram pelas ruas perguntando a quem passava, mostrando a fotografia, mas ninguém viu. Alguns diziam que viram, mas não viram ou apenas acharam que era ela, mas não era. Participamos dessas desventuras quando tiveram notícias de que uma moça com a descrição da Sula havia aparecido num bairro distante. Era triste ver os pais desesperados por uma notícia da filha, com uma fotografia na mão, lembrando da tatuagem nas costas, dos cabelos loiros, dos olhos azuis, mas como de outras vezes, voltaram de mã