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São Paulo em prosa e verso

São Paulo em prosa e verso

São Paulo tem seus encantos. Muitos podem não concordar, mas é uma cidade sedutora em suas contradições arquitetônicas, sociais e culturais. Pode-se comer um bom prato árabe, uma magnífica macarronada ou inconfundíveis pizzas. Já ouvi de italianos que as melhores pizzas do mundo são feitas em São Paulo. Haveria motivo maior para nos orgulharmos desta cidade imponente, aristocrática, miserável, paradoxal e global, tudo ao mesmo tempo? Mas não é uma cidade para iniciantes. É preciso, antes de mais nada, saber olhar a cidade nas suas “entrelinhas”, saborear a sua intimidade meio italiana, meio nordestina, meio africana e, sobretudo meio portuguesa, pois é a presença ibérica que predomina, que dá o seu tempero final no cadinho de culturas.
Para ver São Paulo é preciso mais do que andar pelas suas ruas, praças, avenidas. Talvez seja preciso pegar um cinema, comer uma pizza com alguns copos de chopes bem tirados e sair perambulando, sem hora para chegar nem voltar. Se tiver companhia, vai ser bom, mas com você mesmo talvez seja até melhor. Um pouco de introspecção, falando baixinho, remexendo na memória de outros tempos. Quem sabe entrar em um daqueles bares da Avenida São João e ainda encontrar os personagens da canção do Vanzolini, na bela e nostálgica Ronda? Também vale a pena percorrer a Avenida Ipiranga e parar alguns momentos na esquina com a São João e assobiar a canção do Caetano e sentir um clima de poesia, de decadência urbana, de desassossego e de desesperança. A Praça da República, repleta de pessoas procurando algum sentido para a noite, alguns procurando algum sentido para a vida, outros apenas um cantinho para dormir ou esperando encontros nunca marcados. Prostitutas, homossexuais, crianças abandonadas, pregadores religiosos, vendedores ambulantes, traçam um perfil humano e desumano de uma cidade de exclusões.
Depois de perambular por horas e horas, sem medo de ser feliz, sem orgulho, olhando as pessoas nos olhos, recusando as ofertas de corpos a preços vis, valeria a pena terminá-la na velha Estação da Luz. Sob o pretexto de aguardar a abertura da bilheteria, seria recomendável se espreguiçar num daqueles belos bancos de madeira maciça e cochilar até a chegada do primeiro trem do subúrbio. O Trem das Onze do Adoniram é uma boa pedida para acompanhá-lo, mesmo que não vá para o Jaçanã, cuja estação não existe mais. Para ficar mais emocionante, imagine que sua mãe está a sua espera, ansiosa e preocupada, rezando dezenas de ave-marias para protegê-lo dos perigos demais desta cidade.
Como alternativa que, sem dúvida, proporcionaria um êxtase inesquecível, continue caminhando e fique sobre o viaduto do Chá até que os primeiros raios de sol comecem a surgir no horizonte. Você verá que poucos estarão nas ruas, principalmente se for um domingo, mas rapidamente um turbilhão de gente estará pronta para movimentar a grande cidade despertada para o amanhecer. Você sentirá o renascer da metrópole, o pulsar da vida que se esconde atrás da neblina e da fumaça que embriaga os sentidos. A imaginação é sua e você pode, se for alguém persistente, ver ao longe, numa das avenidas, uma banda se aproximando com os seus metais. Quem sabe uma Carolina apareça numa das janelas de um sobrado esquecido entre os arranha-céus, para ver a banda passar! Tudo é possível em São Paulo, até o improvável, o utópico, o absurdo.
Quem disse que esta cidade não tem poesia? Tem e muita, mas é preciso olhar com os olhos da noite, com os olhos da madrugada e do amanhecer. É preciso, antes de tudo, estar preparado para vê-la. Como já disse, São Paulo não é para principiantes, como os visitantes apressados em busca de negócios ou turistas em busca de novidades, querendo consumir tudo o mais rapidamente possível. Nossa cidade precisa ser seduzida, bem “cantada” para que role alguma coisa encantadora, como uma noite de amor, com muita poesia. A nossa São Paulo não é também para aqueles que aqui nasceram (ainda que arvorem seus direitos) e que não perdem um fim de semana ou um feriado prolongado para fugir dela. Pobres e infiéis amantes, que não sabem o que perdem, pois buscam em braços alheios aquilo que têm em casa. Para conhecer essa paulicéia desvairada, tão bem cantada por Mário de Andrade, é preciso ser um pouquinho antropólogo e confundir-se com ela, conhecer suas virtudes, seus pecados, suas dores, suas crenças, seus valores, suas línguas (e são muitas!) e suas culturas. Nada de preconceitos bobos, esteja aberto como uma criança solta no campo – para o que der e vier.

Renato Ladeia, 25 de janeiro de 2008

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