Quando me visitou já era um
cadeirante, condição em que ficou por causa de um estupido atropelamento ao
atravessar uma rua tarde da noite. Como era poeta, disse que a lua estava tão
bonita que olhou para cima e não viu o carro se aproximando. Ficou lá estirado por horas, pois o motorista
não teve a dignidade de socorrê-lo, talvez por estar embriagado. Ficamos os dois a relembrar nossos tempos de
companheirismo em que distribuíamos panfletos ou fazíamos reuniões quase
festivas para criticar o governo militar e prometer o paraíso para o
proletariado. O Paulinho foi mais longe do que eu, que cedo abandonei o barco
por começar a desconfiar dos revolucionários e das possibilidades de derrubar o
governo. Alguns eram até sinceros e queriam mesmo a volta da democracia, mas
outros estavam mesmo prometendo substituir a ditadura da direita pela da
esquerda.
O meu amigo
passou por maus bocados antes do acidente que o deixou paralítico. Foi preso
duas ou três vezes e na última passou quatro meses no pau-de-arara, técnica de
tortura em que o investigado fica nu e pendurado de cabeça para baixo levando
choques na genitália e outras gentilezas com as quais os torturadores se
especializaram. Gago, não falou quase nada além de xingar os carrascos. Não
falou porque não sabia nada mesmo, pois seus irmãos há tempos estavam na
clandestinidade e passavam longe da casa dos pais que estava constantemente
vigiada. Mas numa visita do DEOPS, o Paulinho estava em casa lendo no maior
sossego, o livro Profeta Armado do Leon Trotsky. Levaram o menino como se fosse
um troféu, um achado. Fiquei sabendo da prisão pelo irmão dele. Diante disso,
eu e outros colegas, ficamos apreensivos com a possibilidade de o Paulo abrir o
bico e dar os nomes dos seus amigos mais chegados, mesmo que não fossem
relevantes para os órgãos de segurança. Mas ele resistiu firme e não disse o
nome de ninguém, nem mesmo dos seus desafetos, coisa comum naqueles tempos.
Foram quatro
meses de torturas e no final desistiram, pois chegaram à conclusão de que ele
não ia falar mesmo. Mas na pior fase das torturas ele chegou a pensar em
suicídio, simulando um encontro no viaduto do Chá com algum militante e de lá
se atiraria. Felizmente não deu certo e ele voltou para o xadrez. No último mês
em que ficou preso, encontrou outros presos que lá passavam o tempo lendo e
discutindo política, entre eles o Betinho e um advogado que se tornou famoso por
defender presos políticos depois de libertado.
Na época da
visita ele estava mais zen e planejava uma viagem de carro até os Estados
Unidos e seria, caso vingasse, o primeiro cadeirante a viajar tão longe. Lia e
relia o Grande sertão Veredas do Guimarães Rosa, seu escritor favorito, citando
de cor páginas inteiras do grande romancista.
Neste dia contou-me que passou maus bocados numa blitz policial. Após
parar o carro, o policial ordenou que saísse sem dar tempo para que ele
explicasse que era um cadeirante. Com a arma apontada para sua cabeça e
tremendo, o policial pensou que ele iria reagir e por pouco não disparou a
arma. Muito calmo, ele conseguiu tranquilizar policial até a chegada do oficial
que comandava a operação.
E a conversa com
o Paulo viajou por todos os cantos em que andou, sempre de carona, fato de que se
orgulhava por ter conhecido o Brasil e toda a América do Sul. Foi com uns
amigos, preso no Uruguai, ainda na época em que as ditaduras estavam à solta
por esses lados. A prisão foi por engano e se suspeitava que os policiais
queriam extorqui-los. Como não tinham
dinheiro, o jeito foi libertá-los. No final considerou que a prisão foi
proveitosa, pois arranjaram lugar para dormir e comida de graça.
Já com a
conversa em ritmo de cruzeiro minha filha ainda pequena, aparece com uma bela
jabuticaba e oferece para o Paulo. Ele olhou bem a jabuticaba e comentou: “É
pra levar para repartir em casa ou como aqui mesmo”. Ri muito e até demorei
para explicar que era a primeira produção e só deu mesmo meia dúzia da saborosa
fruta. E o Paulo, um naturista autodidata, discorreu longa conversa sobre a
fruta que só existe no Brasil. Contou que eu um sítio da família no sul do
estado, havia vários pés e na florada, era a alegria das abelhas que ele criava
para a produção de mel.
Às vezes ele
aparecia para tomar um vinho e fazer uma boquinha e não só uma vez dormiu em
casa sempre com a complacência da Celinha que tinha por ele muito carinho. Gostava
de um baseado, que fumava sem nenhum constrangimento, mas pedia para levá-lo
para fora para não deixar cheiro na casa.
Paulinho
viajou antes do combinado sem realizar o seu sonho de viagem deixando um filho
e, comigo, mais de mil poemas inéditos para que eu lesse e opinasse. Na sua
última visita, levou uns dez livros de minha biblioteca, que pretendia ler numa
temporada que passaria no sítio. Nunca mais voltou e só soube de sua morte após
tentar ligar para seu telefone que não atendia. Só soube mesmo depois que
consegui o telefone de sua irmã.
Lembrei do
Paulo Duarte ao ver a minha jabuticabeira carregada de flores que em breve
serão frutos que prazerosamente divido com maritacas, sabias e bem-te-vis.
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