Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de março, 2008
O ESTRANGEIRO Quando eram soberanos, ao alacufes eram chamados os “Homens”. Depois, os brancos os designaram com o nome com que eles designavam os brancos: os estrangeiros. Passaram a chamar-se entre si de “estrangeiros”. Em sua própria língua. Enfim, nos últimos tempos, eles se chamaram alacufes, a única palavra que ainda pronunciavam diante dos brancos, o que significa “dá, dá” – só eram designados pelo nome de sua mendicância. Primeiro, eles próprios, depois estrangeiros a si mesmos, enfim ausentes de si: a trilogia dos nomes reflete a exterminação (BAUDRILLARD, 1990:141 e 142) Os recentes episódios de deportação de brasileiros que tentavam desembarcar na Espanha merecem uma reflexão mais profunda da estrangeiridade. O problema não é recente na Europa e tampouco na Espanha. A diferença é que os barrados foram jovens mestrandos, de classe média, diferentes dos milhares que saem do Brasil a procura de novas oportunidades. O estrangeiro é bem vindo quando não ameaça o status-quo, não
FLAVIO VIEIRA DE SOUZA Encontrar o Prof. Flávio pelos corredores da faculdade era sempre surpreendente. Tinha sempre um repertório novo de anedotas que contava como se fosse um adolescente e soltando sonoras gargalhadas. Ria de modo a ouvir-se de longe, brincava com ele parodiando o poeta português Fernando Pessoa. Além das anedotas, gostava também de poesias e em uma oportunidade me parou no corredor para declamar um longo e pouco conhecido poema de Pessoa. A sua memória era prodigiosa lembrando e saboreando cada verso, cada palavra como se estivesse lendo. Era sempre o mestre de cerimônias dos eventos da instituição, encerrando os trabalhos com humor e graça, fazendo trocadilhos espirituosos e inteligentes ou mesmo transformando em anedotas algum fato recente. A última vez que nos vimos, estava muito pálido e já falava com dificuldade. Conversamos alguns minutos e percebi que as suas forças estavam se esvaindo, mas continuava irônico e brincalhão. “Só dói quando eu rio”, teria

CRISE GEOPOLÍTICA NA AMÉRICA DO SUL

A crise na América do Sul, mesmo depois de ser apaziguada, ainda deixa algumas questões que precisam ser respondidas com urgência. Uma delas é porque o Hugo Chaves se apressou em ampliar o conflito para que ganhasse dimensões maiores do que realmente tinha. Uma das hipóteses mais veiculadas entre os comentaristas seria que Chaves precisa urgentemente de um fato novo para desviar a atenção sobre a crescente crise econômica na Venezuela. A velha tática de que um inimigo externo pode reduzir o impacto de inimigos intermos poderosos como a inflação em alta, desemprego, produção em declínio, enfim, descontentamento generalizado. Outra hipótese é que o caudilho venezuelano tem projetos muito mais ambiciosos do que pode pensar nossa vão filosofia. A guerra enfraqueceria o estado colombiano, deixando-o a mercê das FARC que poderia desencadear um processo revolucionário, destituindo o governo institucional de Uribe. Dessa forma, Chaves já teria dado o primeiro passo para a instituição da Repú

A PARTIDA DO VELHO E SAUDOSO CONSTANTINO DOZZI TEZZA

Conheci o velho Constantino há mais de vinte anos. Foi-me apresentado pelo seu filho numa festa de aniversário de um dos seus netos. Era um homem esguio, de porte elegante e muito alegre. Era um ítalo-caipira, com o seu jeito sorrateiro de observar as pessoas e sugeria, ainda que não fosse fumante, estar sempre picando um fumo de corda e enrolando numa palha sem fim. Rapidamente, como se fossemos velhos amigos deu-se a me contar causos. Alguns um tanto escabrosos, como o do bando de assombrações que vivia a infernizar a vida do povo de Butiá, um vilarejo de Descalvado no interior do Estado de São Paulo, onde nasceu e morou. Contou-me a história com um sorriso maroto nos lábios, saboreando cada palavra, cada passagem, como quem come um cuscuz bem feito. “Rapaz eu nunca tive medo de assombração, mas daquela vez me arrepiei todo. Os companheiros saíram em disparada largando sanfona, violão e até as botinas pela estrada. Eu fiquei firme, segurando minha flauta. Eu não corro de vivo, vou c

NOÊMIA MOSCARDI

Passava um pouco apressado pela rua Tenente Antonio Alves, no bairro da Saúde e lembrei-me de velhos tempos. Tempos sombrios, é verdade. Estávamos em plena ditadura militar, mas isso não alterava o humor da maioria das pessoas. Os conscientes da situação pintavam o mundo de forma arrasadora, prevendo o caos que nunca chegaria. Os inconscientes ou alienados como eram chamados de acordo com o jargão da época, pouco se lixavam com a situação. Enfim, entre alienados e conscientes, o tempo passava morno e indiferente. Essas lembranças me fizeram parar o carro e olhar para uma casa simples, com aspecto de abandono, com folhas secas espalhadas pelo quintal. Ali moravam a dona Noêmia e o seu Joanin. Entrei no túnel do tempo e divaguei em direção a casa. Lá estava a pequena horta cultivada com carinho pela dona da casa. Na verdade, se é que me lembro mesmo, era um pouco de jardim misturado com horta. No canteiro havia flores que se misturavam às pimentas, ao cheiro verde, pimentão e outras hort

RUA DA ETERNIDADE

Passo rápido pela Rua da Eternidade. Um sacrilégio. Deveria passar por esta rua, calmamente, sem pressa, sem compromissos, leve, solto, nada nos bolsos ou nas mãos. Essa rua começa em uma pequena praça em minha cidade e termina na Estrada das Lágrimas. Não é sugestivo? Depois da eternidade, chega-se as lágrimas ou pode-se ser o inverso: depois das lágrimas à eternidade. Quando menino eu avistava do quintal de minha casa, do alto do pé de sabugueiro, o que é hoje a “rua eterna”. Na época, era apenas um depósito de lixo da cidade e um pouco mais acima, avistava-se uma velha casa de fazenda abandonada, com muitas portas e janelas que todos diziam ser mal-assombrada. A garotada do bairro fazia apostas: quem teria a coragem de ir até lá na escuridão da noite? Todos se arrepiavam de medo e eu, só de pensar, passava noites insones. Para chegar até lá era preciso também, atravessar um pequeno matagal, que para os meus olhos de menino, era uma imensa floresta, repleta de bichos vivos e fantasm