Passo rápido pela Rua da Eternidade. Um sacrilégio. Deveria passar por esta rua, calmamente, sem pressa, sem compromissos, leve, solto, nada nos bolsos ou nas mãos. Essa rua começa em uma pequena praça em minha cidade e termina na Estrada das Lágrimas. Não é sugestivo? Depois da eternidade, chega-se as lágrimas ou pode-se ser o inverso: depois das lágrimas à eternidade.
Quando menino eu avistava do quintal de minha casa, do alto do pé de sabugueiro, o que é hoje a “rua eterna”. Na época, era apenas um depósito de lixo da cidade e um pouco mais acima, avistava-se uma velha casa de fazenda abandonada, com muitas portas e janelas que todos diziam ser mal-assombrada. A garotada do bairro fazia apostas: quem teria a coragem de ir até lá na escuridão da noite? Todos se arrepiavam de medo e eu, só de pensar, passava noites insones. Para chegar até lá era preciso também, atravessar um pequeno matagal, que para os meus olhos de menino, era uma imensa floresta, repleta de bichos vivos e fantasmas. Aquilo tudo povoava meu imaginário de menino e eu me recolhia ao meu quarto, feliz por ter um teto protegido por minha família. Aquilo tudo parecia ser eterno, imutável. Nada mudava. Era um tempo em que as coisas andavam devagar e devagar as janelas olhavam para o mundo.
A fama da casa mal-assombrada era porque apareciam luzes durante a noite que percorriam o casarão. Na verdade, os fantasmas eram apenas mendigos ou sem-tetos, que não tendo luz elétrica, usavam lampiões ou lamparinas para circularem entre os enormes cômodos. Isso vim a saber muito tempo depois, pois até então minha mãe, laconicamente, alimentava em nossas mentes histórias do além.
Mas houve um tempo que tudo mudou por aquelas plagas. Eu também havia mudado e já não tinha mais medo de assombração (pelo menos dizia que não). E descobri, também, que o pé de sabugueiro não era tão alto e nem a mata era tão grande. O lixão virou a Rua da Eternidade, a casa mal-assombrada e seus arredores, um bairro novo e ao lado da “rua do tempo sem fim”, o Cemitério da Saudade. Era para lá que todos iriam ao fim do tempo. Meu pai, zombeteiro e cético, dizia: “Agora sim, quando eu morrer estarei bem perto da última morada, basta descer a rua que chegarei lá. Dá para levar o caixão a pé, não vai precisar nem alugar o carro funerário”. Ele ria disso enquanto minha mãe, muito religiosa, fazia o sinal da Santa Cruz e rezava um Padre Nosso para espantar os maus agouros. Meu pai não acreditava em nada depois da morte. A morte era eterna, acabava-se tudo, dizia ele convicto. Não era ateu, pois tinha a firme convicção de que Deus era um espírito poderosíssimo, mas era descrente com relação a todas as religiões.
E foi para a Rua da Eternidade que ele foi um dia. Não direto de nossa casa, mas do hospital onde ficara internado. Lá ficou exposto durante quase todo o dia, contrariamente ao que sempre desejou: um enterro rápido, sem cerimônias. O padre Ernesto foi encomendar o corpo, mesmo sabendo que o amigo era um incrédulo. Vi lágrimas nos seus olhos, pois freqüentava a nossa casa habitualmente, sempre esperando convencer meu pai a ingressar no rebanho da igreja. Foram mais de quarenta anos de proselitismo, muita conversa e poucos resultados, mas ficou uma grande amizade entre um padre e um quase incrédulo.
E a Rua da Eternidade ainda continua lá e não se sabe até quando. É possível que um dia um vereador mais afoito faça um projeto para mudar o nome para Rua da Esperança e a Estrada das Lágrimas para Estrada do Riso sob o pretexto de dar mais alegria ao povo. Enquanto isso, meu pai, da eternidade, ensaia passos de dança esperando por minha mãe, já que os dois eram notórios pés-de-valsa. Só espero que a eternidade dos dois seja a mesma, pois caso contrário haverá um desencontro no tempo infinito que somente poderá ser corrigido em alguns trilhões de anos-luz.
Renato Ladeia
Quando menino eu avistava do quintal de minha casa, do alto do pé de sabugueiro, o que é hoje a “rua eterna”. Na época, era apenas um depósito de lixo da cidade e um pouco mais acima, avistava-se uma velha casa de fazenda abandonada, com muitas portas e janelas que todos diziam ser mal-assombrada. A garotada do bairro fazia apostas: quem teria a coragem de ir até lá na escuridão da noite? Todos se arrepiavam de medo e eu, só de pensar, passava noites insones. Para chegar até lá era preciso também, atravessar um pequeno matagal, que para os meus olhos de menino, era uma imensa floresta, repleta de bichos vivos e fantasmas. Aquilo tudo povoava meu imaginário de menino e eu me recolhia ao meu quarto, feliz por ter um teto protegido por minha família. Aquilo tudo parecia ser eterno, imutável. Nada mudava. Era um tempo em que as coisas andavam devagar e devagar as janelas olhavam para o mundo.
A fama da casa mal-assombrada era porque apareciam luzes durante a noite que percorriam o casarão. Na verdade, os fantasmas eram apenas mendigos ou sem-tetos, que não tendo luz elétrica, usavam lampiões ou lamparinas para circularem entre os enormes cômodos. Isso vim a saber muito tempo depois, pois até então minha mãe, laconicamente, alimentava em nossas mentes histórias do além.
Mas houve um tempo que tudo mudou por aquelas plagas. Eu também havia mudado e já não tinha mais medo de assombração (pelo menos dizia que não). E descobri, também, que o pé de sabugueiro não era tão alto e nem a mata era tão grande. O lixão virou a Rua da Eternidade, a casa mal-assombrada e seus arredores, um bairro novo e ao lado da “rua do tempo sem fim”, o Cemitério da Saudade. Era para lá que todos iriam ao fim do tempo. Meu pai, zombeteiro e cético, dizia: “Agora sim, quando eu morrer estarei bem perto da última morada, basta descer a rua que chegarei lá. Dá para levar o caixão a pé, não vai precisar nem alugar o carro funerário”. Ele ria disso enquanto minha mãe, muito religiosa, fazia o sinal da Santa Cruz e rezava um Padre Nosso para espantar os maus agouros. Meu pai não acreditava em nada depois da morte. A morte era eterna, acabava-se tudo, dizia ele convicto. Não era ateu, pois tinha a firme convicção de que Deus era um espírito poderosíssimo, mas era descrente com relação a todas as religiões.
E foi para a Rua da Eternidade que ele foi um dia. Não direto de nossa casa, mas do hospital onde ficara internado. Lá ficou exposto durante quase todo o dia, contrariamente ao que sempre desejou: um enterro rápido, sem cerimônias. O padre Ernesto foi encomendar o corpo, mesmo sabendo que o amigo era um incrédulo. Vi lágrimas nos seus olhos, pois freqüentava a nossa casa habitualmente, sempre esperando convencer meu pai a ingressar no rebanho da igreja. Foram mais de quarenta anos de proselitismo, muita conversa e poucos resultados, mas ficou uma grande amizade entre um padre e um quase incrédulo.
E a Rua da Eternidade ainda continua lá e não se sabe até quando. É possível que um dia um vereador mais afoito faça um projeto para mudar o nome para Rua da Esperança e a Estrada das Lágrimas para Estrada do Riso sob o pretexto de dar mais alegria ao povo. Enquanto isso, meu pai, da eternidade, ensaia passos de dança esperando por minha mãe, já que os dois eram notórios pés-de-valsa. Só espero que a eternidade dos dois seja a mesma, pois caso contrário haverá um desencontro no tempo infinito que somente poderá ser corrigido em alguns trilhões de anos-luz.
Renato Ladeia
Às vezes pensamos estar às "moscas" em nossas falas, em nossos registros. Nem sempre!
ResponderExcluirMuitos passam por nossos escritos, outros repassam. Bem poucos, quase nenhum, nos escreve. É assim. Mas a rua da Saudades, a Estrada das Lágrimas é por nós visualizada em suas palavras, em seu código de vida. O tempo é mais poderoso... devemos persistir.
E as músicas de Mari? por que não estão por aqui? e as dicas dos shows do ABC e seus artistas anônimos que elevam o conteúdo da cidade? Por onde andam seus conhecimentos acadêmicos? Os dos seus alunos? da sua Faculdade?
Abrir o leque de textos é se abrir ao mundo.
Alce vôo! Abraços! e parabéns pelas poesias e crônicas.
Geanete
Oi Geanete!
ResponderExcluirVocê está pedindo muito. Meu blog é apenas para o meu lado mais literário, poético. Os artigos acadêmicos podem ser lidos em outras fontes. O show da Mari vai rolar em breve. Depois mando notícias.
Um beijão pra todos.
Olá! Nada é d+ para este universo de possibilidades. Principalmente quando temos a propriedade do registro e da divulgação. Sugiro que nos permita então conhecer, através do seu blog, o endereço eletrônico do site ou blog que contêm os seus registros jornalísticos bem como dos seus colegas acadêmicos e os da artes de nossa região linkando-os em amigos. PENSE NISSO! Sem pressa, apenas pense.
ResponderExcluirAbraços! Geanete
Renato,pois a memória puxa memoria...sua cronica fez-me lembrar da rua juruá,onde vc morava,que dasguava na av tiete onde eu moro ainda,todas as outras com nomes de rios, sem ordem nenhuma,afluentes ou não,pouco importava ao loteador das mesmas,tinha pressa em vender lotes,para os operarios que vinham ,migrantes,de todas as partes...do interior,do nordeste,de minas,e até do exterior...imigrantes corridos do pós guerra europeu,espanhois,italianos,portugueses,e assim formou-se nosso bairro de infancia e juventude.
ResponderExcluir