O ESTRANGEIRO
Quando eram soberanos, ao alacufes eram chamados os “Homens”. Depois, os brancos os designaram com o nome com que eles designavam os brancos: os estrangeiros. Passaram a chamar-se entre si de “estrangeiros”. Em sua própria língua. Enfim, nos últimos tempos, eles se chamaram alacufes, a única palavra que ainda pronunciavam diante dos brancos, o que significa “dá, dá” – só eram designados pelo nome de sua mendicância. Primeiro, eles próprios, depois estrangeiros a si mesmos, enfim ausentes de si: a trilogia dos nomes reflete a exterminação (BAUDRILLARD, 1990:141 e 142)
Os recentes episódios de deportação de brasileiros que tentavam desembarcar na Espanha merecem uma reflexão mais profunda da estrangeiridade. O problema não é recente na Europa e tampouco na Espanha. A diferença é que os barrados foram jovens mestrandos, de classe média, diferentes dos milhares que saem do Brasil a procura de novas oportunidades. O estrangeiro é bem vindo quando não ameaça o status-quo, não rouba os nossos empregos, as nossas mulheres, não invadem os nossos cinemas e restaurantes. Quando passam a incomodar começamos a vê-los como os Outros, os de fora. É exatamente isso que está acontecendo na Espanha. O mais interessante é quando todos, independentemente de serem brancos negros ou mestiços, passam a incorporar o Outro indesejável, aquele que incomoda. Para os policiais da imigração não há diferença. Todos os brasileiros são iguais, são prostitutas, garotos de programa, marginais etc. Tudo vai depender do seu olhar revelador. Ai se dá um processo de racialização do diferente e a questão étnica deixa de ser importante. O problema passa a ser cultural (o jeito de ser, o sorriso, a fala, a roupa etc.).
A estrangeiridade é uma idéia fundamentada na percepção do Outro, o estranho, aquele que se encontra fora do seu espaço original. O estrangeiro, aquele que veio de outro lugar que não o nosso, sempre representou no imaginário humano, uma ameaça à paz, a segurança, às crenças, valores, à família e a propriedade. Por essa razão o estrangeiro representa algo perigoso, que deve ser evitado, mantido à distância. Todos nós passamos por estrangeiros em algum momento da vida, mesmo como um viajante, um visitante ou um turista.
Ser estrangeiro é estar em outro lugar que não o seu lugar de origem e não basta, às vezes, estar no seu lugar de origem se não foi também de seus antepassados. “O estrangeiro vem de outro lugar e nunca está onde estamos, não pertence ao nosso horizonte e não aparece em nenhum horizonte representável, de forma que o invisível seria o seu lugar ” (BLANCHOT, 1969:99).
Somos ao mesmo tempo todos estrangeiros, mesmo na nossa própria comunidade. Somos “estranhos” por pertencermos à outra classe social, a outro bairro, a outra cidade, a outro Estado, a outra religião. Até mesmo o outro sexo é estrangeiro.
“Todavia, ninguém pode realmente ser estrangeiro, salvo na miragem criada pela segregação” (GOLDEMBERG,1998), pois pertencemos a um mesmo planeta, a uma mesma espécie e nenhum povo pode se arvorar como nativo de uma região, de um país, mesmo que seus antepassados o tenha ocupado por centenas ou milhares de anos. No caso dos negros brasileiros que a partir de uma grande diáspora desencadeada pelo tráfico de escravos, milhões deles foram arrancados das entranhas de suas terras onde seus antepassados viveram, sendo despejados numa outra terra distante, onde tornaram estranhos, com outros estranhos, apesar da mesma cor de pele. Conviveram com outros estrangeiros africanos, cujos idiomas, religiões, hábitos e costumes também não conheciam. Tornaram-se todos, independentemente das etnias, em “Outros” numa terra que não era de ninguém e tiveram que construir uma nova identidade com base na cor e no que restou na memória, da cultura dos seus ancestrais.
Considerando que todos vieram de fora, o Brasil é um país de estrangeiros. Todos são estrangeiros e essa percepção se aplica, por mais paradoxal que possa parecer, também aos nativos indígenas que vieram para a América há pelo menos 10.000 anos atrás. Entretanto, entre os estrangeiros que habitam esse país, há um dominante, hegemônico, que controla os mecanismos de poder, incluindo a cultura e a ideologia. O “estrangeiro” branco. Como aqui todos são estrangeiros, não existem os nativos, os autóctones. Os nativos reais foram, ou dizimados, incorporados e depois simbolicamente expulsos e transformados em estrangeiros em sua própria terra, ou pelo menos a terra em que eles estavam há alguns milênios. Essa transformação do nativo em estrangeiro se estabelece em razão da posição hegemônica do invasor, que ocupou, não somente o espaço geográfico, como também o espaço das relações políticas e sociais e conseqüentemente o poder, através dos mecanismos do aparelho de Estado e conseqüentemente da política. Os episódios recentes de assassinatos de indígenas em grandes cidades brasileiras por jovens de classe média, representam a exacerbação do desejo de destruir o outro de forma violenta. Eles são os “Outros”, apenas índios, não humanos. Eles são os “Outros” que devem ser eliminados.
Nem sempre o estrangeiro é apenas isso, ele também pode ser o retrato do fascínio, daqueles a quem atribuímos um certo heroísmo mítico pela sobrevivência na ruptura de uma relação com um Estado, uma nação, um espaço geográfico. No Brasil o estrangeiro é visto sempre com alguém especial, até superior em certos aspectos, pois fala uma outra língua “superior”, tem uma cultura que é venerada e não são mestiços... “O estrangeiro pode ser tanto o Outro inimigo – que pode ser imigrante, árabe, nordestino, negro ou judeu, dependendo da cultura e da época – quanto àquele que fascina por ter sobrevivido à separação” (KOLTAI, 2000:17).
O termo estrangeiro na sua construção histórica, nem sempre teve o mesmo significado que atribuímos hoje para aqueles que vêm de fora. Até o século XIV, na França, era chamado de estrangeiro algo fora do comum, incompreensível. A conotação política de “estrangeiro” para atribuí-la a alguém que vem de fora é mais recente. O termo, como um conceito sociológico, antropológico e mesmo psicanalítico, pode ter conotações diferentes daquilo que chamamos senso comum, utilizado pelas pessoas no cotidiano. Estrangeiro sempre se refere a alguém que vem de outro lugar, que não está em seu lugar de origem. Ele pode ser bem-vindo, mas também pode ser expulso, caso não se comporte adequadamente aos padrões estabelecidos no país que o adotou (KOLTAI, 2000).
É possível admitir que sem atribuir ao “Outro” a condição de estrangeiro não se pode pensar em racismo, pois a gênese desta ideologia está historicamente ligada a forma como atribuímos ao “Outro” uma condição social e política. Castoriadis (1990) lembra que a construção do “Outro” como estrangeiro, ou de fora, aparece, de forma escrita, pela primeira vez, no livro sagrado do povo judeu.
Castoriadis (1990) atribui a discriminação do “Outro”, não ao povo judeu em si mesmo, mas a toda a humanidade. Não foram os ocidentais que inventaram o racismo. Para ele, o racismo nasce com a própria humanidade. O texto do Antigo Testamento deixa explícito que os de fora devem ser eliminados e isso se aplica a todos, incluindo as crianças, pois o “Outro” não pertence a nós e todos os que não fazem parte não devem existir. A eliminação das crianças e mulheres tem o significado mais profundo do que a violência contra os indefesos, pois tem como objetivo “cortar o mal pela raiz”, não deixar “pedra sobre pedra”, enfim impedir qualquer possibilidade de que possam renascer das cinzas, como Phoenix. A segregação do outro como algo ruim, perigoso e ameaçador, está na base do surgimento do discurso racista.
No Brasil se observa a aceitação quase automática dos estrangeiros de fora como seres acima do bem e do mal, enquanto colocamos os compatriotas (os estrangeiros de dentro) numa posição de inferioridade em relação a eles. A situação legal, constitucional, de que todos são iguais (brasileiros), não tem um sentido prático, concreto, nas relações sociais e políticas. Essa situação apenas se manifesta simbolicamente em eventos esportivos, quando todos os brasileiros “vestem a mesma camisa”, independentemente se são brancos, negros, índios ou mestiços. São todos brasileiros enquanto uma identidade nacional, somente enquanto capazes de “esmagar” o “Outro” através do esporte, conseguindo o gozo através da humilhação do estrangeiro.
A identidade entre os brasileiros é bastante frágil e essa condição se deve, em tese, a multiplicidade cultural e étnica e, especialmente, porque todos são metaforicamente estrangeiros. Por isso é comum um branco (ou visto pelos outros como tal) se indagado sobre sua identidade, responder como sendo: português, italiano, alemão, espanhol etc. Até aquele antepassado distante de cinco ou mais gerações atrás, é resgatado para compor a identidade, principalmente se for européia.
Entretanto, a partir do momento em que existe a possibilidade de emergirem como indivíduos, como humanos, passam a incomodar, a representar um risco, uma ameaça para aqueles estabelecidos, acomodados a uma situação de dominação do “Outro”. Uma população composta de indivíduos percebidos como intrusos, tentará se assimilar, mas ela se torna objeto de repulsão e gerará a vontade de destruir. O exemplo de Enriquez (1994) com relação ao extermínio de judeus na Alemanha nazista, ajuda a explicar esse raciocínio, pois isso não poderia ocorrer se eles não tivessem sido assimilados ou em vias de ser, principalmente porque eles tinham funções de responsabilidade na indústria, nas finanças, no sistema jurídico, no meio acadêmico
Mas para o racismo, o outro é inconvertível. Vemos imediatamente a quase necessidade do escoramento do imaginário racista em características físicas (portanto irreversíveis) constantes, ou assim supostas (CASTORIADIS, 1990:37). Aí não importa se as características físicas são realmente relevantes. Qualquer detalhe é ampliado e adquire conotações absurdas e irracionais para justificar a diferença. Todorov (1990) estabelece a distinção entre racismo e racialismo, sendo o primeiro um comportamento antigo e de extensão provavelmente universal; o segundo é um movimento de idéias nascido na Europa ocidental e é apresentada como um conjunto coerente de proposições, que se encontram todas no “tipo ideal” ou versão clássica da doutrina.
Ele explica que para o racialista as raças não são simplesmente grupamentos de indivíduos com aparência semelhante. Ele postula, em segundo lugar, a solidariedade das características físicas e morais; em outros termos, à divisão do mundo em raças corresponde uma divisão por culturas, igualmente bem definida. O racialista afirma que as diferenças físicas determinam as diferenças culturais, neste sentido a transmissão hereditária do mental implica na impossibilidade de modificar o mental pela educação. Nesta linha de raciocínio não há qualquer possibilidade de convencimento, de convertibilidade do “Outro”, pois há um determinismo explícito. Ao odiar o “Outro” pelo que ele é e não havendo o desejo de convertê-lo para si, só resta a sua eliminação. Porém, isso não se faz de forma real, concreta, mas num outro plano, através da negação do direito a ter direitos e, em última análise, o direito de desfrutar da cidadania. No racismo, o mais grave, mais abominável é o fato de que se odeia alguém pelo que esse alguém não é responsável: o seu “nascimento”, ou a sua “raça” (CASTORIADIS, 1992:36).
O racismo surge a partir das diferenças, sejam elas concretas, visíveis ou também imaginárias. Essas últimas são socialmente construídas a partir dos estereótipos, da ameaça que o “Outro” pode representar. Não há uma lógica, uma racionalidade com relação a essas diferenças. “Se um racismo latente é descoberto em todas as sociedades em cada indivíduo é porque ele se articula sobre uma primeira diferença entre o “homem” (membro da comunidade) e o estrangeiro que fascina e que inquieta por sua própria estranheza” (ENRIQUEZ, 1994:104).
Enfim, os estrangeiros estão em toda parte. Eles são os nossos vizinhos, os nossos companheiros de trabalho, os nossos colegas nas escolas; estão nos clubes, nas igrejas, nos restaurantes etc. Quando eles são vistos não apenas como diferentes, mas como aqueles pelos quais as pessoas procuram evitar que acessem os seus empregos ou que possam progredir em função da cor ou de outro atributo, estamos diante do racismo, expresso, não apenas através do preconceito, mas também de ações que viam humilhá-los, prejudicá-los, enfim destruí-los..
Enfim, é preciso contar a história dos alacufes da Terra do Fogo que foram aniquilados sem mesmo terem tentado entender os brancos, falar ou negociar com eles. Durante três séculos de convivência, eles ignoraram os brancos não adotando as suas técnicas, continuaram remando com suas velhas canoas. Eles foram dizimados pelos brancos, mas foi como se não existissem. Nunca foram assimilados, nem sequer atingiram o estádio da diferença. Morreram sem mesmo ter dado aos brancos a honra de reconhecê-los como diferentes. Eram irrecuperáveis. Em compensação para os brancos, eles eram os “outros”, seres diferentes, mas humanos, o suficiente em todo o caso para que fossem evangelizados, explorados e, por fim, liquidados (BAUDRILLARD).
Quando eram soberanos, ao alacufes eram chamados os “Homens”. Depois, os brancos os designaram com o nome com que eles designavam os brancos: os estrangeiros. Passaram a chamar-se entre si de “estrangeiros”. Em sua própria língua. Enfim, nos últimos tempos, eles se chamaram alacufes, a única palavra que ainda pronunciavam diante dos brancos, o que significa “dá, dá” – só eram designados pelo nome de sua mendicância. Primeiro, eles próprios, depois estrangeiros a si mesmos, enfim ausentes de si: a trilogia dos nomes reflete a exterminação (BAUDRILLARD, 1990:141 e 142)
Os recentes episódios de deportação de brasileiros que tentavam desembarcar na Espanha merecem uma reflexão mais profunda da estrangeiridade. O problema não é recente na Europa e tampouco na Espanha. A diferença é que os barrados foram jovens mestrandos, de classe média, diferentes dos milhares que saem do Brasil a procura de novas oportunidades. O estrangeiro é bem vindo quando não ameaça o status-quo, não rouba os nossos empregos, as nossas mulheres, não invadem os nossos cinemas e restaurantes. Quando passam a incomodar começamos a vê-los como os Outros, os de fora. É exatamente isso que está acontecendo na Espanha. O mais interessante é quando todos, independentemente de serem brancos negros ou mestiços, passam a incorporar o Outro indesejável, aquele que incomoda. Para os policiais da imigração não há diferença. Todos os brasileiros são iguais, são prostitutas, garotos de programa, marginais etc. Tudo vai depender do seu olhar revelador. Ai se dá um processo de racialização do diferente e a questão étnica deixa de ser importante. O problema passa a ser cultural (o jeito de ser, o sorriso, a fala, a roupa etc.).
A estrangeiridade é uma idéia fundamentada na percepção do Outro, o estranho, aquele que se encontra fora do seu espaço original. O estrangeiro, aquele que veio de outro lugar que não o nosso, sempre representou no imaginário humano, uma ameaça à paz, a segurança, às crenças, valores, à família e a propriedade. Por essa razão o estrangeiro representa algo perigoso, que deve ser evitado, mantido à distância. Todos nós passamos por estrangeiros em algum momento da vida, mesmo como um viajante, um visitante ou um turista.
Ser estrangeiro é estar em outro lugar que não o seu lugar de origem e não basta, às vezes, estar no seu lugar de origem se não foi também de seus antepassados. “O estrangeiro vem de outro lugar e nunca está onde estamos, não pertence ao nosso horizonte e não aparece em nenhum horizonte representável, de forma que o invisível seria o seu lugar ” (BLANCHOT, 1969:99).
Somos ao mesmo tempo todos estrangeiros, mesmo na nossa própria comunidade. Somos “estranhos” por pertencermos à outra classe social, a outro bairro, a outra cidade, a outro Estado, a outra religião. Até mesmo o outro sexo é estrangeiro.
“Todavia, ninguém pode realmente ser estrangeiro, salvo na miragem criada pela segregação” (GOLDEMBERG,1998), pois pertencemos a um mesmo planeta, a uma mesma espécie e nenhum povo pode se arvorar como nativo de uma região, de um país, mesmo que seus antepassados o tenha ocupado por centenas ou milhares de anos. No caso dos negros brasileiros que a partir de uma grande diáspora desencadeada pelo tráfico de escravos, milhões deles foram arrancados das entranhas de suas terras onde seus antepassados viveram, sendo despejados numa outra terra distante, onde tornaram estranhos, com outros estranhos, apesar da mesma cor de pele. Conviveram com outros estrangeiros africanos, cujos idiomas, religiões, hábitos e costumes também não conheciam. Tornaram-se todos, independentemente das etnias, em “Outros” numa terra que não era de ninguém e tiveram que construir uma nova identidade com base na cor e no que restou na memória, da cultura dos seus ancestrais.
Considerando que todos vieram de fora, o Brasil é um país de estrangeiros. Todos são estrangeiros e essa percepção se aplica, por mais paradoxal que possa parecer, também aos nativos indígenas que vieram para a América há pelo menos 10.000 anos atrás. Entretanto, entre os estrangeiros que habitam esse país, há um dominante, hegemônico, que controla os mecanismos de poder, incluindo a cultura e a ideologia. O “estrangeiro” branco. Como aqui todos são estrangeiros, não existem os nativos, os autóctones. Os nativos reais foram, ou dizimados, incorporados e depois simbolicamente expulsos e transformados em estrangeiros em sua própria terra, ou pelo menos a terra em que eles estavam há alguns milênios. Essa transformação do nativo em estrangeiro se estabelece em razão da posição hegemônica do invasor, que ocupou, não somente o espaço geográfico, como também o espaço das relações políticas e sociais e conseqüentemente o poder, através dos mecanismos do aparelho de Estado e conseqüentemente da política. Os episódios recentes de assassinatos de indígenas em grandes cidades brasileiras por jovens de classe média, representam a exacerbação do desejo de destruir o outro de forma violenta. Eles são os “Outros”, apenas índios, não humanos. Eles são os “Outros” que devem ser eliminados.
Nem sempre o estrangeiro é apenas isso, ele também pode ser o retrato do fascínio, daqueles a quem atribuímos um certo heroísmo mítico pela sobrevivência na ruptura de uma relação com um Estado, uma nação, um espaço geográfico. No Brasil o estrangeiro é visto sempre com alguém especial, até superior em certos aspectos, pois fala uma outra língua “superior”, tem uma cultura que é venerada e não são mestiços... “O estrangeiro pode ser tanto o Outro inimigo – que pode ser imigrante, árabe, nordestino, negro ou judeu, dependendo da cultura e da época – quanto àquele que fascina por ter sobrevivido à separação” (KOLTAI, 2000:17).
O termo estrangeiro na sua construção histórica, nem sempre teve o mesmo significado que atribuímos hoje para aqueles que vêm de fora. Até o século XIV, na França, era chamado de estrangeiro algo fora do comum, incompreensível. A conotação política de “estrangeiro” para atribuí-la a alguém que vem de fora é mais recente. O termo, como um conceito sociológico, antropológico e mesmo psicanalítico, pode ter conotações diferentes daquilo que chamamos senso comum, utilizado pelas pessoas no cotidiano. Estrangeiro sempre se refere a alguém que vem de outro lugar, que não está em seu lugar de origem. Ele pode ser bem-vindo, mas também pode ser expulso, caso não se comporte adequadamente aos padrões estabelecidos no país que o adotou (KOLTAI, 2000).
É possível admitir que sem atribuir ao “Outro” a condição de estrangeiro não se pode pensar em racismo, pois a gênese desta ideologia está historicamente ligada a forma como atribuímos ao “Outro” uma condição social e política. Castoriadis (1990) lembra que a construção do “Outro” como estrangeiro, ou de fora, aparece, de forma escrita, pela primeira vez, no livro sagrado do povo judeu.
Castoriadis (1990) atribui a discriminação do “Outro”, não ao povo judeu em si mesmo, mas a toda a humanidade. Não foram os ocidentais que inventaram o racismo. Para ele, o racismo nasce com a própria humanidade. O texto do Antigo Testamento deixa explícito que os de fora devem ser eliminados e isso se aplica a todos, incluindo as crianças, pois o “Outro” não pertence a nós e todos os que não fazem parte não devem existir. A eliminação das crianças e mulheres tem o significado mais profundo do que a violência contra os indefesos, pois tem como objetivo “cortar o mal pela raiz”, não deixar “pedra sobre pedra”, enfim impedir qualquer possibilidade de que possam renascer das cinzas, como Phoenix. A segregação do outro como algo ruim, perigoso e ameaçador, está na base do surgimento do discurso racista.
No Brasil se observa a aceitação quase automática dos estrangeiros de fora como seres acima do bem e do mal, enquanto colocamos os compatriotas (os estrangeiros de dentro) numa posição de inferioridade em relação a eles. A situação legal, constitucional, de que todos são iguais (brasileiros), não tem um sentido prático, concreto, nas relações sociais e políticas. Essa situação apenas se manifesta simbolicamente em eventos esportivos, quando todos os brasileiros “vestem a mesma camisa”, independentemente se são brancos, negros, índios ou mestiços. São todos brasileiros enquanto uma identidade nacional, somente enquanto capazes de “esmagar” o “Outro” através do esporte, conseguindo o gozo através da humilhação do estrangeiro.
A identidade entre os brasileiros é bastante frágil e essa condição se deve, em tese, a multiplicidade cultural e étnica e, especialmente, porque todos são metaforicamente estrangeiros. Por isso é comum um branco (ou visto pelos outros como tal) se indagado sobre sua identidade, responder como sendo: português, italiano, alemão, espanhol etc. Até aquele antepassado distante de cinco ou mais gerações atrás, é resgatado para compor a identidade, principalmente se for européia.
Entretanto, a partir do momento em que existe a possibilidade de emergirem como indivíduos, como humanos, passam a incomodar, a representar um risco, uma ameaça para aqueles estabelecidos, acomodados a uma situação de dominação do “Outro”. Uma população composta de indivíduos percebidos como intrusos, tentará se assimilar, mas ela se torna objeto de repulsão e gerará a vontade de destruir. O exemplo de Enriquez (1994) com relação ao extermínio de judeus na Alemanha nazista, ajuda a explicar esse raciocínio, pois isso não poderia ocorrer se eles não tivessem sido assimilados ou em vias de ser, principalmente porque eles tinham funções de responsabilidade na indústria, nas finanças, no sistema jurídico, no meio acadêmico
Mas para o racismo, o outro é inconvertível. Vemos imediatamente a quase necessidade do escoramento do imaginário racista em características físicas (portanto irreversíveis) constantes, ou assim supostas (CASTORIADIS, 1990:37). Aí não importa se as características físicas são realmente relevantes. Qualquer detalhe é ampliado e adquire conotações absurdas e irracionais para justificar a diferença. Todorov (1990) estabelece a distinção entre racismo e racialismo, sendo o primeiro um comportamento antigo e de extensão provavelmente universal; o segundo é um movimento de idéias nascido na Europa ocidental e é apresentada como um conjunto coerente de proposições, que se encontram todas no “tipo ideal” ou versão clássica da doutrina.
Ele explica que para o racialista as raças não são simplesmente grupamentos de indivíduos com aparência semelhante. Ele postula, em segundo lugar, a solidariedade das características físicas e morais; em outros termos, à divisão do mundo em raças corresponde uma divisão por culturas, igualmente bem definida. O racialista afirma que as diferenças físicas determinam as diferenças culturais, neste sentido a transmissão hereditária do mental implica na impossibilidade de modificar o mental pela educação. Nesta linha de raciocínio não há qualquer possibilidade de convencimento, de convertibilidade do “Outro”, pois há um determinismo explícito. Ao odiar o “Outro” pelo que ele é e não havendo o desejo de convertê-lo para si, só resta a sua eliminação. Porém, isso não se faz de forma real, concreta, mas num outro plano, através da negação do direito a ter direitos e, em última análise, o direito de desfrutar da cidadania. No racismo, o mais grave, mais abominável é o fato de que se odeia alguém pelo que esse alguém não é responsável: o seu “nascimento”, ou a sua “raça” (CASTORIADIS, 1992:36).
O racismo surge a partir das diferenças, sejam elas concretas, visíveis ou também imaginárias. Essas últimas são socialmente construídas a partir dos estereótipos, da ameaça que o “Outro” pode representar. Não há uma lógica, uma racionalidade com relação a essas diferenças. “Se um racismo latente é descoberto em todas as sociedades em cada indivíduo é porque ele se articula sobre uma primeira diferença entre o “homem” (membro da comunidade) e o estrangeiro que fascina e que inquieta por sua própria estranheza” (ENRIQUEZ, 1994:104).
Enfim, os estrangeiros estão em toda parte. Eles são os nossos vizinhos, os nossos companheiros de trabalho, os nossos colegas nas escolas; estão nos clubes, nas igrejas, nos restaurantes etc. Quando eles são vistos não apenas como diferentes, mas como aqueles pelos quais as pessoas procuram evitar que acessem os seus empregos ou que possam progredir em função da cor ou de outro atributo, estamos diante do racismo, expresso, não apenas através do preconceito, mas também de ações que viam humilhá-los, prejudicá-los, enfim destruí-los..
Enfim, é preciso contar a história dos alacufes da Terra do Fogo que foram aniquilados sem mesmo terem tentado entender os brancos, falar ou negociar com eles. Durante três séculos de convivência, eles ignoraram os brancos não adotando as suas técnicas, continuaram remando com suas velhas canoas. Eles foram dizimados pelos brancos, mas foi como se não existissem. Nunca foram assimilados, nem sequer atingiram o estádio da diferença. Morreram sem mesmo ter dado aos brancos a honra de reconhecê-los como diferentes. Eram irrecuperáveis. Em compensação para os brancos, eles eram os “outros”, seres diferentes, mas humanos, o suficiente em todo o caso para que fossem evangelizados, explorados e, por fim, liquidados (BAUDRILLARD).
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