Em outubro de 1975, era assassinado nos porões da ditadura, o jornalista de origem judaica, Vladimir Herzog, logo depois que ele se apresentou para atender a uma intimação. Avisou sua mulher que iria se apresentar e não estava muito preocupado, pois não tinha cometido nenhum crime, pelo menos no seu modo de ver as coisas. Não voltou mais e algumas horas depois Clarice recebia a notícia de que ele havia se “suicidado”. A família Herzog que saiu da Iugoslávia para fugir do antissemitismo alemão durante a guerra e perdera um filho nas circunstâncias mais absurdas.
A notícia comoveu o país e o mundo, pois Herzog era diretor de jornalismo da TV Cultura, um canal do governo do Estado de São Paulo. Na época, o presidente da República era o General Ernesto Geisel e o governador o empresário Paulo Egydio Martins, escolhido pelo presidente. O Secretário da Cultura era o empresário José Mindlin, dono da Metal Leve, também judeu, a quem Herzog era subordinado.
A morte de Herzog teve grande repercussão na mídia, principalmente porque Geisel estava conduzindo uma abertura política, preparando o terreno para a saída dos militares do poder. Fora do Brasil a tragédia chegou a assustar pelo fato do general presidente ser filho de alemães e o assassinato de um cidadão brasileiro e judeu, com requintes cruéis nas dependências do segundo exército, sob o comando do general Ednardo d’Ávila Melo, um militar de extrema direita. Não era o ressurgimento de uma perseguição aos judeus, mas uma insubordinação de uma ala mais radical das forças armadas que não queria a abertura política.
Clarice Herzog de repente se tornava viúva e suas fotografias nos jornais mostravam a dor e a revolta, diante do poder totalitário que se impunha ao país. Com dois filhos pequenos, a jovem publicitária recebeu a notícia mais chocante possível, pois em poucas horas depois de se apresentar seu marido era apenas um cadáver. As crianças, ainda sem entenderem o que acontecia, esperavam ansiosas a sexta-feira, pois iriam passar o fim de semana no sítio da família. Tudo mudou naquele dia, nada mais foi como antes. Clarice precisou se reinventar e assumir sozinha as rédeas da casa.
Ela foi proibida de dar entrevista e o velório deveria ser restrito. O boletim oficial do segundo exército indicava que a morte foi provocada por suicídio e os suicidas são sepultados em local separado nos cemitérios judaicos. Entretanto, o rabino Henry Sobel, contrariou as ordens oficiais e celebrou o ritual fúnebre de Herzog como a de um mártir. Depois, uma missa ecumênica foi realizada na Catedral de São Paulo com a participação de representantes de várias correntes religiosas e grandes personalidades da política e da intelectualidade paulistana. Apesar do cerco militar no entorno da Catedral, milhares de pessoas compareceram ao evento. A ditadura dava então os seus últimos suspiros.
E Clarice mostrou força e determinação nos 45 anos que se sucederam ao assassinato do seu marido. A primeira vitória ocorreu anos depois com um juiz responsabilizando o estado pela morte do jornalista, pois ao se apresentar espontaneamente, cabia ao segundo exército zelar pela sua integridade física e mental. A fotografia do jornalista ajoelhado no chão com um cinto amarrado no pescoço, foi a demonstração mais grotesca de um “suicídio” forjado. O autor da farsa não se lembrou do óbvio, que para se enforcar, o corpo deve ficar pelo menos a alguma distância do chão.
Ontem ela apareceu na TV. Não era mais a bonita e jovem viúva de 35 anos, mas uma senhora de 80, com todas as marcas que o envelhecimento deixa; porém, conservando a força que a motivou na sua constante luta contra a tirania em busca de justiça. E mesmo depois de tanto tempo, tendo a ditadura chegado ao fim, ela continua inabalável na sua procura pela justiça que a anistia abafou, protegendo os algozes do seu falecido marido. Ela citou durante uma entrevista, a fala cruel de Bolsonaro que disse: “Eu não estava lá... Suicídios acontecem” e Clarice conclui: “É um horror esse homem”.
Clarice foi homenageada na canção o Bêbado e o equilibrista de João Bosco e Aldir Blanc, com o verso: “Chora a nossa pátria mãe gentil/ Choram Marias e Clarices/No solo do Brasil”. Mas é a canção de Caetano Velloso, criada antes, em 1968, que sugere a melhor imagem dessa corajosa e determinada mulher, “Que mistérios tem Clarice/ para guardar-se assim tão firme/ no coração”.
Num dia desses visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...
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