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DIÁRIO DA QUARENTENA

Acordo com a sensação de que o fim de semana não tem mais fim. Parece que estamos emendando um com o outro e desapareceram as segundas, terças, quartas... Terminamos o Verão, o outono e estamos entrando no Inverno e tudo parece igual, com as mesmas folhas da quaresmeira inundando o quintal. Felizmente não estamos sozinhos, pois filha, genro e neto ajudam a passar o tempo, principalmente o menino arteiro que todos os dias aparece com uma nova artimanha para deixar todos de cabelos em pé. Minha rua é pequena e sem saída. O movimento maior é por conta do caminhão de lixo que passa quatro vezes por semana, sendo uma de material reciclável. Esses materiais aumentaram bastante, pois temos comprado tudo por telefone. A padaria fez até umas graças enviando de brinde potes de café gourmet do Vale do Paraíba, mas pararam, pois, deve ter acabado o estoque. Alguns vizinhos saem para a rua sem máscaras e parecem pouco preocupados com a pandemia. Reconheço que pelo movimento da rua, não correm nenhum perigo. Meu vizinho de frente resolveu reformar a casa em plena pandemia. Desde janeiro um grupo de trabalhadores labuta diariamente sem nenhuma proteção. O dono despachou a família para outras bandas e somente ele aparece diariamente para fiscalizar a obra, mas também sem máscara. Suponho que seja daqueles que não acredita nessa história de pandemia. Outro dia ouvi um dos trabalhadores comentando: “Essa coisa vai matá nois tudo. Tu vai ver”. O difícil é que os operários chegam às 7 da manhã toma lá furadeira, martelete, serra elétrica etc. Para quem fica assistindo séries até uma da madrugada, fica difícil. Desde muito tempo, faço as minhas caminhadas sem sair do lugar. Na minha esteira, viajo pelo mundo, lendo e relendo. Li o saboroso livro do sociólogo nascido em São Caetano, José de Souza Martins, onde conta com um olhar de sociólogo e outro de moleque e depois adolescente, suas aventuras na Rua Paraíba, adjacências e na Cerâmica São Caetano (Moleque de Fábrica). Li também, do mesmo autor, “O coração da metrópole ainda bate”. Leio também as obras completas do poeta espanhol Federico Garcia Lorca, que aos 37 anos teve sua vida tirada pelos fascistas franquistas e nunca foi encontrado o lugar de sua sepultura. Garcia Lorca, além de poeta, foi dramaturgo, musicista e artista plástico. Um multiartista genial. Se sobrevivesse a Guerra Civil espanhola, poderia deixar uma obra bem mais extensa. Uma pena. Quando minha esteira quebrou me aventurei e saí, fazendo caminhadas na minha rua. É chato, pois preciso dar vinte voltas para manter os cinco quilômetros que faço habitualmente. Caminhei mais de meia hora sem encontrar uma viva alma até que um dos vizinhos saiu da toca. Demorei para reconhecê-lo com sua máscara e com a distância regulamentar, trocamos apenas algumas palavras quando nos cruzamos. Logo o técnico apareceu para consertar minha máquina de andar e saio à rua apenas para colocar o lixo para fora. A esteira foi consertada na garagem e ficamos a uns três metros de distância. O técnico é agnóstico, mas acredita que o poder no universo está presente nas leis da física. Seria um bom papo se não fosse a pandemia. A madeira da balança do meu neto no quintal foi corroída pelos cupins e passo uma manhã inteira para consertá-la. Aliás, os serviços de manutenção da casa não acabam nunca. Todos os dias tenho alguma coisa para consertar ou limpar e mal sobra tempo para escrever ou ler um pouco. Podo árvores e cuido do jardim que o Tom destrói sempre. Os filmes e séries têm tomado conta das noites após o jantar, isso quando tenho apetite para tal, pois na maioria das vezes só belisco alguma coisa, pois tenho estado inapetente. Desde janeiro, assistimos Better call Saul e Breaking Bad, com suas cinco temporadas cada. Uma maratona de seriados até a meia noite ou mais. Vimos também a série espanhola, O Sucessor e La outra mirada. A italiana La vita promessa, uma versão novaiorquina de Rocco e seus irmãos do Visconti, retratando uma família siciliana que vai para NY para fugir dos “coronéis da atrasada Sicília”. Assinei o My Family Films e estou revendo clássicos dos grandes diretores do cinema. O difícil é que a Internet é lenta e leva tempo para o download das películas. As notícias sobre a pandemia me deixam entediado, mas não com medo. Quando era criança tinha pavor de morrer. Na adolescência ainda tinha pesadelos com a morte, mas depois de adulto, passei a encarar a vida como “morrimento” um pouco por dia. Mesmo assim tomo todos os cuidados, pois se alguém pegar o vírus, pode espalhar para todos em casa. Meu medo é mais pelos outros, pois perder as pessoas que amamos dói muito. A única vez que sai de casa foi para ir ao dentista em São Caetano do Sul. Fui o primeiro cliente da tarde e não peguei o elevador. Subi pacientemente os cinco andares, sem pressa de chegar, pois como diz a canção, “ando devagar porque já tive pressa...”. O dentista é o filho do profissional que me atende desde os anos 1980, que conheci menino brincando no consultório do pai. Isso me faz lembrar que o tempo está voando e não passando e agora um fim de semana emendando com outro, piorou. Quase não tenho falado com os amigos. Tenho notícias deles pela rede social. Como não ligo, eles também fazem o mesmo. Falei com um deles outro dia. Mora sozinho e nem a namorada tem encontrado. Parece que todos preferem a solidão para esperar o dia do juízo.

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