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FAZENDA SÃO VICENTE

Recebi uma fotografia da velha casa da Fazenda São Vicente, que uma prima, a Sandra Zambone, me enviou. Está desmilinguindo, o telhado está cedendo e, provavelmente, os ratos e insetos devem reinar por toda parte. Quantas histórias se passaram pelo interior da casa desde a sua construção há quase cem anos. Iniciou pela retirada das madeiras da floresta, ainda exuberante. Foram grandes perobas, imbuias, jequitibás e aroeiras. A aroeira, considerada como um pau-ferro, pois resiste ao tempo e até sob a água, foi usada como alicerce para a casa ficar acima do solo. As paredes de peroba e o assoalho de imbuia outras madeiras nobres resistem até hoje. Eram quatro quartos, uma sala e uma grande cozinha com fogão de lenha. Nela passei uma longa temporada quando criança sob os cuidados da minha prima e madrinha. Lá convivi um pouco com meu avô, um homem de poucas palavras que passava horas lendo num banco ao lado da casa, lendo ou colocando os velhos olhos na invernada. As vezes ele me levava para um passeio pela fazenda ou até a roça para apanhar mamões. Ele me erguia ao alto e indicava os frutos maduros. Na volta caminhávamos em silêncio, vagarosamente sob o sol quente do noroeste paulista. Eu não dizia nada porque não sabia o que dizer e ele porque não tinha assunto com um pirralho de quatro anos. E assim, passávamos o tempo costurando silêncios entre um velho e uma criança que tentava acompanhar os passos das longas pernas do avô. Ele era um autodidata empobrecido que sabia latim e espanhol, que aprendera no século XIX quando era um bom vivant, filho de um fazendeiro escravocrata. Muitas das histórias do seu tempo eu soube por minha mãe. Adolescente voltei para lá várias vezes, sempre em busca do tempo perdido como Proust. Aprendi a cavalgar e perdi o medo de cair, como eu tinha no tempo de criança e fazia longos passeios pela invernada ou saia a galope pela estrada. Passava quase todas as tardes com meu tio que me pedia que eu lesse a bíblia, pois seus olhos já estavam cansados. Às vezes tinha tédio naquelas tardes mornas, lendo as letras miúdas da Bíblia, mas ele era um bom homem e eu não conseguia negar-lhe esse prazer. Foi nessa casa velha que eu tive as minhas primeiras discussões com Deus, mas sempre em silêncio, principalmente depois de ler Samuel ou o Apocalipse. Meu tio um crente fundamentalista, acreditava no Armagedon, a grande batalha entre o bem e o mal que ocorreria no final dos tempos e todos os crentes salvos voltariam à Terra para o resgate do paraíso perdido. Ele tentava me convencer do seu credo, mas eu me perdia propositalmente entre a história real e os mitos religiosos. Meus livros de história estavam em desacordo com o seu livro sagrado e quando eu mencionava alguma discordância, ele ficava desconfortável. Falava-me muito sobre coisas do passado, sobre o tempo em que abriu a fazenda, comprada de um lendário italiano chamado Geremias Lunardelli, com quem trabalhou. Contava sobre os índios que encontrou pelos caminhos, quando a Estrada de Ferro Noroeste Paulista estava sendo construída. Lembrou-se uma vez de uma bela cunhataí, muito bonita, que encontrou no meio da floresta e que ficou muito assustada com sua presença. Parecia que descrevia a mulher indígena de uma antiga guarânia chamada “India”, cantada por uma dupla bem afinada dos anos 1950, chamada Cascatinha e Inhana. Quando jovem acompanhou as revoluções dos anos 1920 e narrava sobre as batalhas, que acompanhou pelos jornais e rádio da época. Sempre que estava lá, gostava de dar uma expiada na cozinha e via pela memória de criança a dona Joaquina, uma velha portuguesa, baixinha e volumosa com seu avental a cuidar do almoço no fogão à lenha. Às vezes, saia a gritar pelo quintal para espantar as galinhas de Angola ou os miúdos que estavam por lá a brincar. Os miúdos poderiam ser eu e meus irmãos quando passávamos as férias por lá. Havia um grande fogão a lenha, onde um bule de café sempre aquecido. Ao lado, a despensa, onde ficavam os alimentos e um quarto onde eu dormia com meus primos mais velhos e o meu avô. Uma vez eu lhe perguntei por que não construía uma casa de alvenaria como a da sua filha. Ele ria, dizendo que a casa estava ótima e para que gastar dinheiro numa nova casa no final da vida? A velha casa de madeira lhe trazia boas e más lembranças, como a morte prematura da mulher e as boas como os casamentos das filhas, as longas conversas na mesa de jantar ou os tempos pioneiros em que tudo era muito difícil e as distâncias deitavam cansaço nos olhos e nas pernas. Hoje a fazenda está arrendada para plantadores de cana de açúcar e nada lembra os tempos em que meu tio ainda vivia. A grande fazenda foi fatiada entre os herdeiros e alguns ainda são proprietários, mas estão distantes de plantações e colheitas, preferindo a vida prática das cidades. Quem se lembrará da São Vicente dentro de poucos anos? Nem mesmo alguém para contar suas histórias estará vivo. A canção do Milton Nascimento com Fernando Brant menciona uma San Vicente com sabor de vidro e corte, onde a horas não contavam e o que era negro anoiteceu... mas é outro lugar, um paraíso imaginário do poeta.

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