Já se foram os tempos em que ter um carro era sempre uma aventura imprevisível. Acontecia de tudo e ai daquele que não tivesse um bom mecânico para socorrê-lo. Com tantos problemas, era natural que os “felizes” proprietários acabavam entendendo de mecânica o suficiente para algumas emergências.
Trabalhando numa empresa ainda menor de idade, vi passarem, quase que semanalmente pela oficina da companhia, os carros dos chefes e gerentes que constantemente deixavam os donos na mão. Um gerente de vendas chamado George, tinha um antigo sedã Citroem preto, um carro elegante com um enorme cofre do motor que se projetava para frente. Era o carro que sermpre aparecia em um seriado francês “A Interpol”, que era sucesso na época. Achava o carro o máximo em charme e beleza.
Meu irmão caçula, o Nelson, era apaixonado por carros e ainda menor de idade comprou em sociedade com um amigo, um Austin 1938. Eles dividiam o carro semanalmente, mas era comum o carro deixá-los no meio do caminho. Uma vez ele foi parado por um policial que pediu a carta. Ele não tinha, obviamente. Pediu os documentos e ele mostrou, mas estava há décadas sem licença. “Então saia do carro”, disse o guarda furioso. “Desculpe seu guarda, mas a porta não abre”. O policial não sabia se ria ou chorava e disse: “Tire essa porcaria da minha frente”.
Depois do Austin ele comprou um Ford 1938, que quase não quebrava, mas um dia travou a direção e detonou um carro estacionado na avenida. O dono logo encontrou o autor da façanha, um menor de idade dirigindo um carro com documentação vencida. Meus pais acabaram pagando o conserto e ele ficou de devolver em prestações mensais. Mas o carro ficou na rua até que lhe ofereceram pelo carro uma troca estranha: uma bicicleta velha, um violão, uma coleção de figurinhas carimbadas e um maço de cigarros importados. Com lágrimas nos olhos ele aceitou a oferta, pois não tinha grana para consertar a caixa de direção.
Um velho amigo, Jorge Moscardi, tinha um Karmanghia importado que ele chamava de Porshão, mas que de Porshe não tinha nada. Nas velhas madrugadas depois das festas ou da boemia, ele convidava a namorada, eu e a Celinha para empurrarmos a caranga, que muito teimosa, não gostava de dar a partida quando estava fria. Fizemos isso várias vezes e ele sempre prometia que era a última vez e que iria consertar o carro.
Meu sogro, apaixonado por carros, comprou seu primeiro sedã em 1950. Era um velho Buick que vivia mais na oficina do que rodando. Seu cunhado tinha um Chevrolet 1935 que ele afirmava que nunca quebrava. Como o carro do meu sogro quebrou e ele tinha programado um passeio a Santos, pegou o Chevrolet do cunhado emprestado. Logo sentiu que o motor não estava lá essas coisas, mas como não tinha alternativa, foi em frente. Uma tragédia. O motor fundiu na subida da serra, tarde da noite. O guincho e o conserto ficaram os olhos da cara.
O pai de um amigo de adolescência, o Billi, tinha um Chevrolet Belair 1952. Lindo de morrer,era branco, com estofamento de couro vermelho e um belo painel. O velho português era ciumento com o carro e raramente deixava o filho dirigi-lo. Mas nas poucas vezes que passeamos nele, as garotas suspiravam, mas era só pelo carro.
Hoje, ter um carro não tem a graça e o charme de antigamente. Raramente quebram e quando isso acontece liga-se para o seguro que manda guinchar o carro e ainda oferece um reserva. Troca-se de carro como se troca de roupa, sem sentimentos e sem poesia. O compositor e poeta Noel Rosa tinha um velho Chevrolet com muitas histórias e canções. Em “Três apitos”, ele canta para uma linda operária: “Você que atende ao apito, de uma chaminé de barro, por que não atende ao grito tão aflito, da buzina, do meu carro...”. Vinicius de Moraes e Antônio Maria*, semanalmente saiam dos bares de madrugada no carrão do Maria, onde repassavam pelo caminho, histórias sobre as belas mulheres que tiveram ou desejaram. Muitas vezes iam até a praia e lá esperavam o dia nascer ou quem sabe inspiração para alguma poesia. Sempre no carro. E não podemos esquecer de que o Roberto Carlos faturou alto com uma canção em que um velho calhambeque conquistava o coração das garotas pelo caminho.
*jornalista, poeta e compositor
Num dia desses visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...
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