Ter um carro no passado era o sonho de todo mundo. Um possante era a sensação de andar pelas ruas com segurança sem medo de chuva ou de ser assaltado com o carro em movimento, sair e voltar a hora que quiser, sem depender de ônibus ou trem. Pegar uma estrada e se sentir o dono do mundo com o vento acariciando o rosto. Tudo isso sem contar com a possibilidade de namorar a garota mais cobiçada do bairro. Tive um colega que seu rival passou de carro e a sua namorada o largou no meio da rua. Uma tragédia. Ele bebeu formicida, mas por sorte foi socorrido a tempo. Tudo por culpa de um carro.
Nos fins dos anos 1950 e início de 1960 a moda entre os jovens de classe média era puxar carros estacionados nas ruas e dar uma voltinha. Quem fazia isso era o filho menor de idade do professor Sérgio Buarque de Holanda, um tal de Francisco. Mas a brincadeira acabou mal e ele e seu amigo foram pegos pela polícia. Como eram menores e com cara de filhinhos de “papai”, ficaram mofando na delegacia até a chegada dos responsáveis. Depois dessa, a brincadeira acabou.
Aos dezoito anos comprei o meu primeiro fusquinha 1967 com um empréstimo de um tio, mas ainda não havia tirado a CNH. Circulando por São Caetano o carro “morreu” ao lado de uma viatura policial. Não deu outra. Mandaram encostar o carro e pediram os documentos. Como o carro era meu, só ficou o problema da habilitação. Os policiais tinham uma ocorrência em outro local e me deixaram com um deles, um negro de quase dois metros que me convidou para tomar um café. É claro que o café era uma senha para uma propina, mas eu estava duro. Por coincidência, lembrei que o policial foi um colega de ginásio, cujo apelido era Lumumba, por causa de um líder africano famoso na época, o Patrick Lumumba. Como não tinha amizade com ele, nem adiantou lembrar que fomos colegas de classe no Barão do Rio Branco. O fusquinha bordô foi mesmo guinchado. Voltei para casa a pé e desesperado, pois achava que havia perdido o carro que ainda não estava pago. No dia seguinte meu pai ligou para um amigo e uma hora depois o carro estava em minha casa, mas a chave ficou escondida até que eu tirasse a CNH.
Muitos anos depois, já casado, comprei um Passat, lindo demais, uma raridade recomendada por um amigo e com ele fui até Lavinia visitar uns parentes. No caminho percebi que cai no conto do vigário. O carro bebia mais óleo do que gasolina. Em cada parada precisava completar o reservatório do cárter. O carro era lindo, mas ordinário. De Lavinia, demos uma esticada até Andradina, cidade quase nas barrancas do Rio Paraná, para visitar uns parentes. A noite saímos para um chope com as minhas primas Zamboni. Lá conhecemos um amigo delas que conhecia de memória todos os poemas do Cruz e Souza. Foi uma bela noite com bom papo e muita poesia. Na volta, de madrugada, o carro negou fogo e voltamos a pé olhando a lua que dançava no horizonte. No dia seguinte o Zídio Zamboni gentilmente me levou a um mecânico, seu amigo, que deixou o carro pronto para a volta. Mal chegando, despachei o Passat para outro ingênuo, mas avisei sobre o óleo.
Existem muitas histórias prosaicas sobre carros e principalmente carros velhos e pessoas da minha geração e de anteriores devem ter boas para contar. O amigo Jorge Moscardi, o mesmo do Karmanghia importado, encontrou num estacionamento em São Paulo, uma velha e rara Ferrari por uma bagatela. Como bom entendedor de carros, percebeu ali um tesouro e pediu para o homem reservar o carro que ia providenciar o dinheiro. Quando voltou com o dinheiro, o dono do estacionamento lamentou, mas apareceu outro interessado que ofereceu o dobro do preço e ele vendeu. Ele comentou que o comprador retirou o carro e disse que ia enviar para a Itália e já havia vendido a raridade por um milhão de dólares. Meu amigo e o vendedor ficaram com a sensação de ganhar na loteria e perder o comprovante de aposta.
Às vésperas do carro elétrico e possivelmente compartilhado com outros usuários, o carro já deixou de ser objeto de desejo, para se tornar um peso no orçamento, além do desconforto no trânsito, sem contar as multas traiçoeiras que nos deixam com a sensação de criminosos pegos em flagrante. Com a entrada de mais de vinte mil carros por mês nas ruas, só em São Paulo, tudo tende a piorar. Como não temos uma estação de Metrô a cada quinhentos metros como em Paris, vamos continuar dependendo dos carros para se locomover. O carro compartilhado será sem dúvida a grande mudança na mobilidade urbana no futuro. Vai funcionar como o Uber, mas dividido com outras pessoas. Basta localizar um veículo próximo e esperar. Como não teremos mais motoristas, não haverá mais possibilidades de multas e acidentes. E os carros particulares? Só serão usados para viagens e olha lá.
Num dia desses visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...
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