ADÃO E EVA
Era uma das primeiras histórias
que se ouvia. Em casa tínhamos uma bíblia ilustrada e tão logo aprendíamos a
ler, já queríamos saber mais detalhes sobree essa fantástica história. Adão, criado do barro com um sopro divino. Eva ou a mãe de todos, foi criada com uma costela
de Adão. Uma serpente teria induzido Eva a comer o fruto proibido,
desobedecendo as ordens expressas do criador.
Filho de mãe católica praticante
e pai quase agnóstico, viví num ambiente sem muitas certezas com relação às
crenças religiosas. Enquanto minha mãe obrigava os filhos a irem à missa toda
semana, fazer o catecismo e a Primeira Comunhão, meu pai fazia ouvidos de
mercador às queixas dela com relação à desobediência dos filhos no tocante à
religião. As minhas irmãs seguiram os padrões da época, mas eu e meus irmãos fizemos as obrigações
religiosas aos trancos e barrancos. Fugíamos das aulas de catecismo para
brincar na rua ou no próprio pátio da igreja.
Me recordo que tempos depois o
padre da paróquia começou a frequentar nossa casa com o objetivo de convencer
meu pai a frequentar a igreja e quem sabe se casar no religioso, já que era
casado apenas no civil. E foi em casa que ouvi primeiras discussões sobre Adão
e Eva com o Padre Ernesto Cozer que afirmava que era uma história simbólica e
não podia ser levada ao pé da letra. Como era apenas um casal, deduzia-se que para povoar a Terra houve o casamentos incestuosos,
mas esses detalhes ficavam apenas subentendidos. A liberalidade do padre
tornava a conversa sobre religião bem mais interessante e a acabou conquistando
meu pai que o recebia com grande prazer. Suas visitas eram semanais e se repetiram por
anos e acredito que eram por dois motivos: pela boa conversa e pelo uísque que
era servido sem moderação.
Anos depois Adão e Eva acabaram
voltando às discussões em casa quando um compadre intelectualizado, funcionário
do IBGE, que eles conheciam desde o interior começou a falar em teoria da
evolução de Darwin. E foi ele que deixou alguns livros em casa sobre esse e
outros temas. Essa conversa era um pouco
complexa e gerou pouco interesse em casa. Entretanto, logo entendi que pela
teoria darwiniana não houve apenas um Adão e uma Eva, mas possivelmente vários
casais no processo evolutivo que deu origem ao homo sapiens. O professor de ciências
no ginásio, um dentista de origem judaica tocava no assunto, mas de forma muito superficial e logo foi
questionado por um aluno curioso que talvez tivesse lido mais sobre evolução do
que ele. E foi por isso ele mandou que eu saísse da sala para não atrapalhar a
aula.
Em Paraiso Perdido de Milton do
século XVII, além da discussão sobre questões humanas, mostra que o primeiro
casal do Eden era apaixonado e também sugeria de que tinham descoberto o sexo. O
livro de Milton li, também, precocemente e sem entender muita coisa quando
trabalhava como office boy. Mas meu chefe era muito culto e me explicava alguns
detalhes.
Mais tarde vieram as descobertas
dos poemas mesopotâmicos de Gilgamash, um
rei mitológico, de existência anterior à presença hebraica na Mesopotâmia. Eles
foram decifrados através das pranchetas cuneiformes que revelaram grande
semelhança com as narrativas do primeiro livro bíblico como a criação do homem,
a figura da serpente e o dilúvio.
Mas é com a ideologia do Gênero
que o papel de Eva começa a ser contestado. Ao invés de ser apontada como a
culpada por todas as desgraças humanas, uma corrente feminista afirma que foi
apenas usada pelo homem para instituir o poder patriarcal. Assim, a inocência
dos primeiros humanos foi quebrada com a instituição da diferença sexual, do
poder e da transgressão.
A história fantástica do primeiro
casal criado por inspiração divina não tem mais o interesse que havia na minha
infância, pois a teoria de Darwin ensinada nas escolas desconstruiu essa forma
de ver a origem da humanidade. Mas
existem reações contra essa teoria e em alguns estados norte-americanos é
proibido ensinar outra teoria além do criacionismo. Opiniões a parte, continuo
achando que o nosso pároco tinha mesmo razão. Para ele a explicação da Bíblia é
simbólica e fazia sentido há mais de dois mil anos. Hoje, com as descobertas
arqueológicas, os estudos do genoma humano entre outros, acabaram sepultando o
mito.
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