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Caminhas entre os mortos e com eles conversas...


Quando criança os mortos me assustavam e com eles tinha pesadelos que terminavam com um grito no meio da noite.  Hoje, com tantos entes queridos e amigos mortos perdi o medo e também a esperança de que eles voltam para puxar as nossas pernas como as histórias que as minhas irmãs mais velhas contavam para assustar os irmãos mais novos.
Minha mãe volta e meia sonhava com mortos: pai, mãe, irmãos e pelo menos com duas irmãs tinha sonhos frequentes. Uma dela se matou por ver seu amor proibido pela família e a outra se mudou para o Mato Grosso e nunca mais a viu. Com a última ficou uma pendência não resolvida. Era o remorso pela falta do perdão e de despedida. A que se matou era quase a sua mãe. Por ser a mais velha e minha mãe a mais nova, era quem cuidava dela enquanto a mãe cuidava da casa e das suas costuras. Quando minha mãe começou a ter demência senil, os seus encontros com os mortos ocorriam mesmo quando estava acordada. Quando ia visitá-la, às vezes, ela dizia: “Seu pai esteve aqui, conversamos bastante sobre nossa vida juntos e os filhos. Ele está preocupado com fulano e não é para estar?” Em outras ocasiões falava sobre o encontro com a irmã que nunca mais viu. Eram sempre momentos de perdões, arrependimentos e lágrimas.
Quando sonho com os mortos, estamos no cotidiano de nossa outrora vida familiar. Às vezes durante o sonho lembro de que eles estão mortos, mas na maioria das vezes nem me lembro disso. Mas isso acontece quase sempre na casa onde morávamos e na penumbra da noite. Meus sonhos sempre ocorrem à noite ou, raramente, no entardecer. Nunca pesquisei a causa, mas deve ser porque dormimos sempre à noite. Sonho com coisas absurdas, coloridas, músicas, discussões filosóficas, políticas ou literatura.
Tive um tio, casado com a irmã de minha mãe que era da seita Testemunhas de Jeová, que acreditava que depois do Armagedom, a grande batalha do bem contra o mal, os fieis ressuscitariam e voltariam à vida na terra e gozariam a eternidade felizes, sem guerras, tristezas, mortes, fome etc. Meu pai, um tanto cético, questionava, mas como a fé não deixa espaço para questionamentos, meu tio deslizava seguro de que o seu passaporte para o retorno da eternidade estava garantido.
A grande verdade é que o ser humano não se conforma com a morte, quando cessa a nossa história de vida e ficamos apenas nas lembranças dos parentes e amigos por algum tempo. Aqueles que fazem história vão para os livros, praças e ruas e podem ser lembrados por mais tempo, mas não pela eternidade, pois é muito pouco, pois sou pouco otimista de que teremos vida na terra nos próximos 100 ou 200 anos.
E foi no poema Elegia 1938, que o poeta Drummond escreve: Caminhas entre os mortos e com eles conversas/ Sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito. E assim, a morte se torna companhia para os poetas, filósofos e teólogos, sempre com a pergunta: “Haverá vida depois?”. Nossos mortos nunca responderam e os seres humanos só encontram conforto nas palavras dos livros religiosos. Para os que creem, isso basta. Para aqueles que não creem resta o conforto da ciência: “Viveremos para sempre no DNA dos nossos descendentes, desde que os tenhamos”. Com bom humor Millor Fernandes assim se manifestou sobre a descoberta de múmias de três mil anos descobertas no Egito: “A morte pode não ser eterna, mas que dura muito tempo ninguém pode duvidar”.


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