Um dos personagens que povoou a minha infância era um alagoano chamado Abílio Macedo. Era nosso vizinho, mas não muito próximo. Entretanto, quase que semanalmente, ele passava em casa para uma boa conversa com meu pai. Era naqueles tempos em que a televisão ainda não havia usurpado os serões da família brasileira. As visitas eram constantes e as conversas fluíam do cotidiano, como problemas de saúde, de trabalho, política e o melhor de tudo, relatos dos velhos tempos, onde a memória tem um papel fundamental. A memória ia construindo ou reconstruindo fatos, histórias, verdadeiras ou quase verdadeiras. Hoje sei que o narrador sempre acrescenta algo seu, suas impressões pessoais sobre o que conta.
Lembro-me que às vezes, sentado no chão, fazendo de conta que brincava com um carrinho ou qualquer coisa, ficava atento àquelas histórias dos tempos antigos. Aí que entrava a memória do seu Abílio. Ela falava dos tempos do cangaceiro Lampião, personagem temível do nordeste brasileiro. Meu pai interessado estimulava o nosso contador de histórias a falar mais e mais sobre os fatos burlescos ou horripilantes da barbárie do sertão nordestino. Infelizmente minha memória não registrou, em detalhes, nenhuma das histórias, mas ficaram os momentos de tensão, em que a distância entre a vida e a morte era muito pequena. As histórias relatadas estavam centradas em velhos coronéis, homens de coragem ou nos covardes que não honravam as calças que vestiam. Os mais atraentes eram aqueles que enfrentavam as injustiças ou a desonra a bala ou com um punhal afiado como nos filmes que assistia nas matinês dos domingos.
Às vezes tomava coragem e interrompia a conversa para perguntar algo para confirmar a veracidade das narrativas. Aquelas histórias eram bem mais reais do que via nos filmes de bang bang ou nos gibis. Eram fortes e emocionantes, pois o contador era um personagem vivo da história. Meu pai não gostava que criança interrompesse a conversa de adulto, mas o nosso narrador não se incomodava em repetir algum detalhe ou acrescentar um pouco mais de emoção para encantar os seus ouvintes. Minha mãe cuidando dos afazeres domésticos ficava atenta na cozinha, ouvindo cada detalhe e vez por outra aparecia na porta para também confirmar se era mesmo verdade. “É tão verdade como eu estou aqui. Posso jurar que eu vi”, respondia o seu Abílio com firmeza e convicção.
Assim a noite passava com todos envolvidos nas histórias de um mundo que estava se acabando, pensava-se na época. O poder dos velhos coronéis estava sendo substituído por políticos profissionais. Mudaram-se os métodos, mas os personagens continuaram os mesmos. O personalismo do velho patriarcado continuou intacto num mundo regido pela comunicação de massa. As notícias sobre como se faz política confirmam que nada mudou neste país. As mesmas histórias estão hoje estão nos jornais, na televisão ou no rádio, sob novas roupagens.
No meio da conversa aparecia um cafezinho preparado por minha mãe que se aconchegava para fazer as honras da casa e participar um pouco da conversa de homens. Mas havia sempre uma hora que indicava o final da conversa e o nosso narrador apanhava o seu chapéu e se despedia prometendo um breve retorno.
As visitas foram ficando mais esparsas e aos poucos, eu já não dava mais importância para aquelas conversas de homens maduros. A televisão também roubou o espaço destinado às conversas e cafezinhos na maioria dos lares urbanos e cada um se confinou diante do aparelho voraz que dizimou a história oral, os velhos causos, as relações e o convívio entre familiares e vizinhança.
A última vez que vi o seu Abílio, acompanhado de dona Amália, sua esposa, foi na igreja do bairro, no final da missa de sétimo dia do falecimento de meu pai. Após um rápido cumprimento, nos despedimos e percebi, naquele momento, que aquele homem abatido pelo tempo fazia parte da construção da minha visão de mundo. Um mundo que vai se apagando, gradativamente, como uma foto envelhecida.
Renato Ladeia
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