Antigamente ter um padrinho era coisa séria, tanto para as crianças, como para os padrinhos. Os compadres eram escolhidos a dedo. Precisavam ser pessoas de confiança e que fossem verdadeiros amigos, pois pela tradição, na ausência dos pais, o padrinho teria a responsabilidade pela formação do afilhado. A relação de compadrio foi uma instituição bastante importante no Brasil, principalmente na zona rural, onde ainda hoje tem alguma relevância. Antonio Cândido em seu estudo sobre os caipiras paulistas, Os parceiros do Rio Bonito, lembra que ao afilhado cabe respeitar o padrinho de modo especial e pedir-lhe a bênção sempre que for encontrado como a um pai. Deve ainda comunicar-lhe o seu noivado, como que pedindo uma autorização paterna. Dessa forma o padrinho sempre exercia uma especial influência sobre os afilhados, e em muitos casos, se sobrepunha a dos próprios pais.
Numa conversa que tive com um africano do Senegal, da tribo dos Pels, Mamour Elimani Ba, ele contou-me que é um costume do seu povo dar um filho a uma pessoa de destaque na comunidade para que ele crie a criança. O desejo dos pais biológicos é que seus filhos sejam tão virtuosos como o pai adotivo. No Brasil, a relação entre compadres, de certa forma, é construída com alguma semelhança, a partir da confiança e admiração que um pai tem para com um amigo ou pessoa influente na comunidade.
Meu padrinho foi um negro, filho de escravos, um grande amigo da família. Era uma pessoa doce e generosa cuja lembrança guardo com grande carinho. Convivi pouco com ele, pois morava no interior de São Paulo em um sítio onde cultivava um belo jardim repleto de flores. Apesar de sua origem, aprendeu sozinho a ler e escrever e falava o vernáculo com excepcional correção. Participou da revolução de 32 e ainda guardava, como relíquia, uma arma utilizada na guerra, uma pistola alemã de 1912, que deixou para o meu pai. Gostava de caçar e sempre que podia se aventurava pelo Mato Grosso, mas não usava armas de fogo, somente um punhal bem afiado e as técnicas dos caçadores africanos que aprendeu com seu pai. Um dos presentes que ganhei dele foi um belo couro de onça que infelizmente foi roubado de nossa casa. “Para o amigo trago minha grande amizade e meu corpo doente que precisa de ajuda e para o meu afilhado, esse couro de onça Pintada que cacei no Mato Grosso quando ainda tinha saúde e vigor”, disse ele ao meu pai quando nos visitou pela última vez. Morreu alguns dias depois após uma cirurgia mal sucedida.
Mas quero falar de um outro grande padrinho que foi o Lázaro Garcia, o Lazinho, padrinho e tio por afinidade de meu amigo o Dr. Jorge Moscardi, que sempre teve por ele um enorme respeito, admiração e carinho. Em várias oportunidades falava dele como uma pessoa de grande dignidade, preservando valores atualmente esquecidos. O Lazinho, mesmo sendo uma pessoa de origem simples, conseguiu se educar com certo refinamento, trabalhando em um clube inglês em São Paulo. Lá executou várias tarefas até se tornar um fino garçom, aprendendo a apreciar bons pratos e bons vinhos, sempre com moderação. Meu amigo, também de família modesta, aprendeu com o padrinho o gosto por coisas sofisticadas, envolvendo não somente a boa culinária e bebidas, mas também boa música, a arte e alguns segredos da noite paulistana, principalmente dos retiros boêmios.
Lazinho, que tive o prazer de conhecer, era um gentleman, que recebia os amigos do seu afilhado com uma delicada atenção e carinho. Para nós ele era como um tio amável e generoso que dedicava-nos preocupações como se fossemos também seus sobrinhos. Com seu jeito elegante e sorriso simpático, era uma pessoa encantadora e sempre que nos encontrávamos nas festas na casa do afilhado, eu aproveitava para tirar um dedinho de prosa com ele. Lembro-me que ele ostentava orgulhoso um relógio Omega, um velho suíço que foi objeto de desejo de muitas gerações até os anos sessenta. Esse relógio, se não me falha a memória, ele ganhou como prêmio por longos serviços prestados ao clube em que trabalhou. Isso me faz lembrar também que meu pai sempre sonhou em ter um, mas o parco orçamento nunca permitiu tal extravagância.
Tempos depois o seu velho e precioso suíço foi roubado num assalto, o que lhe trouxe grande desgosto. Mas o afilhado, sempre atento ao velho e amado padrinho, conseguiu comprar outro da mesma marca, o que lhe devolveu um pouco da alegria para seus últimos anos de vida. “Eu precisava dar essa alegria ao Lazinho, eu devo muito a ele”, disse o Jorge emocionado. Com essa história eu fiquei a matutar se não deveria ter também presenteado o meu velho com um desses, como fez o Jorge com seu padrinho.
O coração do Lazinho estava fraco e já dava sinais de que sua passagem pela terra estava prestes a terminar, pois sua missão já estava cumprida. Seus últimos dias foram assistidos pelo querido afilhado, que apesar da correria da vida de médico de hospital em hospital, diariamente, passava para vê-lo e confortá-lo em seus últimos momentos. Em meu último encontro com o meu amigo, falei da vontade de ver o velho Lazinho antes que partisse, mas não houve tempo e ele viajou sem eu pudesse lhe dar um abraço, o que lamento profundamente, pois sempre acabamos deixando o que é essencial para depois. E nada é mais essencial do que a vida, mesmo que seja para resgatar um pedaço de nossas memórias.
Renato Ladeia
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