Lygia foi eleita imortal da Academia Brasileira de Letras, mas continuou com o direito de morrer, pois como dizia um velho amigo falecido, a vida eterna é numa coisa sem graça. Há um momento em que é preciso descansar do corpo velho e repleto de dores aqui e acolá. A memória já não funciona direito e os dentes já não conseguem estraçalhar uma picanha ao ponto com a mesma força e prazer dos tempos de antanho. A imortalidade da Lygia é outra. A imortalidade é da sua obra que sempre será lembrada, lida e relida enquanto durar esse velho e maltratado planeta do sistema solar.
Encontrei a Lygia duas vezes, a primeira numa palestra na faculdade. Ela era ainda uma jovem e bela mulher e eu na flor da idade. Consegui a duras penas apertar sua mão e parabenizá-la pelas belas palavras, num tempo difícil em que até para os poetas e escritores havia agentes da ditadura a espreita. Às vezes para o palestrante e outras para identificar no público aqueles que fazem perguntas incomodas para os donos do poder. Muitos anos depois estava hospedado numa pousada na pequena e bucólica Casemiro de Abreu, nome em homenagem poeta lá nascido e falecido muito jovem, soube que ela estava por lá. Quem nos avisou foi o amigo e gerente, o Fiico, muito parecido com o Martinho da Vila, ele também é um simpático e talentoso violinista. E nas idas e vindas da praia, a encontramos com uma amiga. Disse seu nome em voz pouco discreta e ela se assustou. Surpreendida por pensar que era uma hóspede anônima, abriu seu largo e simpático sorriso para nos cumprimentar. Procurei a câmera fotográfica, mas havia esquecido no quarto e não pude registrar o momento. Procurei depois numa livraria do lugarejo, mas não encontrei nenhum livro dela para pedir-lhe um autógrafo, enquanto ela estivesse na pousada. Nos encontramos outras vezes em cafés, restaurantes e no refeitório da pousada, sempre simpática e agradável, mas não quis incomodá-la.
Soube hoje que ela partiu, imortalizada pela academia e pela sua obra, deixa a vida para continuá-la na história. Formada em direito nas Arcadas da São Francisco, cedo preferiu a poesia, os contos e romances, produzindo belas páginas da nossa literatura. Deixou seus gatos que adorava e fazia-lhe companhia. Dizia que preferia os gatos aos cães, pois eles são mais independentes e não precisam muito da gente.
Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome. Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva
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