Eta
cafezinho bom!
O café está glamorourizado. Virou
uma bebida sofisticada com degustação e outros adereços. Um barista é capaz de
descobrir no aroma de um café, notas de amêndoas, sabor de cítricos ou um leve
toque de cacau fresco. Alguns se arriscam em afirmar que determinada marca de
café gourmet tem traços de alma penada com sofrimentos frutados. Brincadeira? Pode
até ser, mas algumas fragrâncias detectadas por alguns baristas, imitando os
someliers são dignas da imaginação criadora, não acessíveis aos comuns dos
mortais.
Já ficaram conhecidas variedades
de café cujas amêndoas passaram pelo aparelho digestivo de alguns animais, como
gatos selvagens de uma região asiática ou mesmo de uma gralha brasileira do
Espirito Santo. Nos dois casos os bichos ingerem os frutos dos cafeeiros,
digerem a casquinha adocicada e evacuam os grãos, que são recolhidos, limpos e
higienizados para serem consumidos como um dos cafés mais caros do mundo. Os
saboreados pelos gatos selvagens chegam a custar a bagatela de 500 dólares o
quilo. Os digeridos pelas gralhas brasileiras não chegam a tanto, mas fala-se
em cifras em torno de 200 dólares. A justificativa para tamanho preço é que as
enzimas digestivas dos animais agregam notas diferenciadas de sabores ao grão,
imperceptíveis aos reles mortais.
Não há nada que prove alguma
diferenciação nestes cafés especialíssimos, mas o fato de dar muito trabalho
para coletar os grãos espalhados pelas plantações e a retirada dos resíduos
fecais podem justificar os preços inflacionados. Há toda uma mística em torno
do assunto, mas me desculpem os baristas altamente especializados, mas esses
cafés passaram, em sua cadeia produtiva, pelo popular e pouco sofisticado cocô.
Mas cá entre nós, eu adoro café e
desde muito pequeno. Na casa dos meus pais sempre curtíamos café feito no
coador de pano variando entre a colocação do pó no coador ou depositado
diretamente na caneca de água, ainda no fogo, antes de coar. O café em casa
tinha um sabor muito especial e era diferente dos cafés vendidos no mercado por
uma razão muito simples. Nossos parentes de Lavinia, região noroeste de São
Paulo, cultivavam café numa fazenda de mais de 100 alqueires e nos enviavam em
todas as colheitas, um saco bem granado de grãos tipo arábico, o mais comum por
essas bandas. A encomenda chegava a estação de trem de São Caetano e meus pais
eram avisados por telegrama para retirarem o produto despachado depois de uma
viagem de mais de 600 quilômetros de estrada de ferro. Na época esta estação
tinha uma arquitetura em estilo inglês do início do século passado como a
Estação da Luz. Uma carroça era contratada para fazer o transporte e aí começava
um processo que, diga-se de passagem, eu detestava. O café era torrado por mim,
que ficava privado de jogar minhas peladas nas ruas ou de brincar com carrinhos
de rolimãs por dois ou três dias até que uma lata de vinte litros de café
estivesse torrado. Depois vinha a outra tarefa que era moer o dito cujo até
encher pequenas latas para o consumo diário.
Esse café, pelas minhas
lembranças olfativas e gustativas tinha um sabor especial. Talvez porque na
torrefação manual ficava levemente fora do ponto ou mesmo porque durante a
viagem o saco vinha misturado com galinhas e porcos que eram transportados pela
estrada de ferro. Mas minhas tarefas não ficavam por aí. Aprendi a coar ou
passar um café digno de elogios por toda a família e visitantes que passavam
sempre lá em casa para degustar o nosso delicioso café. Um vizinho, chamado Antônio
Piffer, um simpático velhinho italiano era um degustador habitual do nosso café.
Quando não tinha a bebida pronta minha mãe gritava: “Renato, venha fazer um
cafezinho pro nono” e completava para que ele não pensasse que era por
preguiça: “Ele sabe fazer um ótimo café, seu Antônio”. Como eu gostava muito do nono, era com prazer
que fazia e servia o cafezinho em troca de algumas boas charadas e histórias de
sua Itália.
Hoje com a profusão de variedades
de cafés (existem por volta de quinhentas), ainda não consegui identificar o
café de Lavinia, cultivado pelos meus parentes até os anos sessenta. Por melhor
que sejam os expressos da melhor qualidade, sempre falta um toque de saudade da
minha casa, dos meus pais, que nunca mais vou encontrar em lugar nenhum.
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