OS DIÁRIOS DO ALMIRANTE
A história vista pelos diários de bordo.
Relendo os Diários de Bordo do
Capitão e depois Almirante Graham Eden Hamond* escritos nos longínquos anos de 1825
e 1838, revi umas passagens interessantes em que o oficial inglês escreve sobre
o Brasil e seu povo. Na primeira parte
do diário (1825), Hamond ainda era capitão e foi responsável por trazer a
comitiva encarregada do reconhecimento da independência do Brasil. A maior
parte do diário se refere aos encontros protocolares e alguns aspectos técnicos
de navegação, mas como era do seu estilo fazer comentários sarcásticos sobre
pessoas e costumes, não resisti e anotei alguns deles, muitos não são
politicamente corretos para um oficial estrangeiro em viagem de representação,
mas que representavam a visão eurocêntrica e elitista de uma potência imperial
européia.
Era agosto de
1825 e ele avista uma carruagem puxada por quatro cavalos que era dirigida por
nada menos que o nosso jovem e fogoso imperador, informalmente vestido, que dá
a volta e retorna para cumprimentar os ingleses, mesmo sem falar uma palavra na
língua de Shakespeare. Estávamos
construindo a nossa informalidade, nosso jeito de quebrar regras e padrões
formais de comportamento. Dias depois Hamond comenta em seu diário que vê a
imperatriz Leopoldina montada em um cavalo como um homem (na época as mulheres da
elite montavam de lado nas selas dos cavalos) e ela também estava acompanhada
por um negro branco e um padre preto. O que ele quis dizer com negro branco?
Provavelmente um escravo mestiço, com a pele branca. O padre preto também era
algo surpreendente para a época, pois era raro um negro ter acesso a um
seminário.
Naquele tempo
os franceses estavam em alta no Brasil depois de um acordo em que 600 jovens
brasileiros foram convidados a estudar na França com as despesas pagas.
Enquanto no Rio de Janeiro habitavam mais de 3000 franceses, apenas 600
ingleses eram moradores na cidade, apesar da grande influência econômica dos
britânicos no país. A Rua do Ouvidor,
que existe até hoje, era praticamente uma rua de franceses, com muitos
modistas. Era o prenúncio da invasão dos “Pierre Cardin, Yves Saint Laurent,
Louis Vuitton” etc. Essa preferência pelos franceses surpreendeu o inglês, pois
em suas visitas a Portugal, observara que a influência inglesa era notória
entre os lusitanos.
E o palácio do
imperador? O nosso almirante o descreve como um edifício feio, amarelo e na
época estavam a fazer nele alguns puxadinhos, pois era pequeno demais para abrigar
a corte. E a cidade maravilhosa? Hamond narra um dia de chuva, em pleno 1825 e
diz, maldosamente, que é a cidade mais imunda que já viu em sua vida e até os
escravos estavam cobertos de lama. Em dias de chuva parece que o Rio gosta
ainda de reviver os velhos tempos. Mais
adiante ele comenta que não pode achar a cidade saudável por causa dos
abomináveis pântanos que tem em redor. No mesmo dia, o oficial britânico
manifesta dúvidas se Portugal vai mesmo reconhecer a independência do país de
forma tranqüila ou vai manter uma soberania nominal sobre a antiga colônia.
Estava errado, apesar de que o Brasil foi obrigado a pagar uma pesada
indenização ao império português, que apesar dos trezentos anos de exploração
das riquezas da terra ainda exigiu os “lucros cessantes”.
No dia 15 de
dezembro de 1834 havia chegado ao porto um brigue com 500 escravos a bordo que
fora detido por um capitão inglês. Havia nele 521 escravos, mas 21 morreram
pelas péssimas condições a bordo. Hamond prevê a morte de 1 a 2 escravos por
dia. Dias depois ele comenta que 200 dos melhores escravos foram roubados
durante a noite. Com este episódio ele manifesta descrença de que o governo
queria realmente abolir o tráfico, pois o tratado era bastante antipático para
os brasileiros. O pior é que um juiz brasileiro acusava os ingleses pelo roubo
dos escravos. Hamond qualifica os ministros brasileiros como salafrários.
Posteriormente ele relata que o Ministro das Relações Exteriores, um tal de
Aureliano foi acusado como responsável pelo roubo dos escravos.
Ele relata em
10 de fevereiro que houve, na Bahia, um levante de escravos que resultou na
morte de 60 deles durante a violenta repressão do governo local. Vê-se pelo
relato que a situação não era muito pacífica no império com relação à ordem escravocrata.
Outro fato
interessante relatado pelo oficial inglês é o seu encontro com o imperador, em
que ele descreve que “É um menino de 10 anos com uma aparência agradável.
Estava vestido de uniforme azul e ouro, calças brancas e amarrado a uma espada enorme”.
Neste episódio, relativo à comemoração do aniversário da constituição,
estavam presentes vários oficiais e ao descrever um deles, o britânico assim se
expressa: “Um mulato oficial do exército, tinha o aspecto de um imenso babuíno e,
realmente, só lhe faltava o rabo”.
Observa-se pela descrição que dependendo da posição social e econômica,
não havia dificuldade de acesso dos mestiços aos altos escalões militares e nem
mesmo na corte. O que é bastante desagradável é a forma racista com que o inglês
se referia as pessoas de origem africana.
Outro fato
curioso são os comentários que faz sobre as mulheres, principalmente com
relação aos dentes. Numa ocasião descreve uma mulher brasileira pertencente à
elite que não tinha um único dente na boca. Num baile Hamond comenta sobre a
dança na moda no Rio de Janeiro, a quadrilha e elogia os músicos, na maioria
mulatos.
No dia 24 de
junho, dia de São João, relata que houve uma grande festa, mostrando que a
comemoração, que hoje tem importância maior no nordeste do que nas outras
regiões do país, era uma festa bastante concorrida na capital do império.
Em 31 de julho
o seu navio está atracado em Recife, onde ele observa que os escravos negros de
lá são bastante diferentes dos existentes no Rio de Janeiro, notando que são
provavelmente originários de apenas uma região da África. Como de costume, ele faz observações racistas
ao dizer que alguns teriam belas faces se não fossem negros.
Sua pena
crítica não perdoava o governo brasileiro da época ao mencionar que os recursos
seriam prodigiosos se as receitas fossem aplicadas corretamente. “Mas o
peculato, nos vários departamentos, vai além de qualquer observação possível” (pg.89).
Infelizmente isso mostra que nossa vocação para o patrimonialismo tem raízes
antigas. Numa outra passagem, comenta sobre a captura de mais um navio
negreiro, que apesar da proibição, o tráfico continua no país. Com desalento
ele revela que de pouco adiantara a captura, pois em pouco tempo os escravos
estariam trabalhando nas fazendas apesar de estarem sob a custódia do governo.
A propalada
fama de que as mulheres brasileiras são muito bonitas não encontrava em Hamond uma
opinião muito favorável, pois escreve em seu diário que havia poucas mulheres
realmente bonitas no Brasil. Cita ainda a opinião de um francês, que havia
estado em vários lugares no mundo, que dizia que nunca havia visto, numa
reunião, tão grande número de mulheres feias como no Rio de Janeiro.
Os diários do
Almirante, apesar dos seus comentários preconceituosos e reveladores de um
distanciamento muito grande da realidade brasileira por parte de um oficial
elitista e preconceituoso, são interessantes para se captar nuances do
cotidiano do Brasil há quase duzentos anos. Um país recentemente independente
que manteve intactas as estruturas coloniais após se libertar do jugo da
metrópole portuguesa
- HAMOND, G. E. “Os diários do Almirante Grahan Eden Hamond 1825 -1838”. Tradução de Geyer, Paulo Fontainha, Rio de Janeiro: Editora JB, 1984.
Renato Ladeia
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