O
MARQUINHOS
Marquinhos
era “mariquinha”. Era assim que todos os garotos do bairro se referiam a ele. A
molecada era cruel, mas ele nem dava bola para a galera. Com sete ou oito anos,
passava batom na boca e usava os sapatos de salto de sua irmã mais velha. Muita
gente da turma falava em “comer” o Marquinhos, mas era só conversa,
principalmente, porque ele nem sabia direito o que era isso. E continuava com seu
jeitinho efeminado, dengoso e sempre na dele.
Pobre
Marquinhos morava num cortiço com mais seis irmãos em apenas um quarto. O
banheiro era dividido com outras famílias. Sua mãe dona Encarnacion, era uma
espanhola magra e doente que trabalhava duro para sustentar a família. O marido
de vez em quando aparecia para ver os filhos, mas ajudava pouco ou nada. O dono
do cortiço quase sempre aparecia para cobrar os aluguéis atrasados. Parava o
Chevrolet Bel Air e descia engravatado com o filho e um empregado. Era um
acontecimento na vizinhança. Era comer
ou pagar o aluguel. Dona Encarnacion dizia para os vizinhos: “No hay dinero
para comer, no hay dinero para alugueres”. E assim iam tocando a vida.
A
irmã mais velha do Marquinhos, a Lola, começou a trabalhar numa fábrica lá
pelos lados da Mooca. Coitada, precisava levar marmita e quase sempre era um
ovo frito com arroz e feijão. Entrava às duas da tarde e saia às dez da noite.
Chegava em casa quase meia noite, quando não chovia. Um dia, desgostosa da
vida, resolveu cair na vida e não voltou mais para casa. Demorou muito tempo
até que apareceu muito bem vestida e distribuiu presentes para todos os irmãos
e nunca mais voltou. A mãe, uma senhora muito respeitosa e religiosa, renegou a
filha, uma puta.
A
outra irmã, a Marisa, era muito bonita e tinha belas pernas. Era avoada e por pouco não foi seduzida por um
dos rapazes metidos a bacana do bairro. E não sei que fim levou, pois algum
tempo depois a família mudou-se do cortiço para outro bairro. Com os hormônios a flor da pele, tive
pesadelos com a Marisa e as suas pernas morenas e roliças sempre a mostra por
causa dos vestidos curtos. Para que tanta perna meu Deus! Meu coração
pensava. Mas meus olhos não pensavam em nada. Eu ainda não havia lido o
Drummond, mas o poema se encaixava perfeitamente nos meus devaneios.
E Marquinhos
continuava sendo um menino diferente. Quando estava lá pelos treze anos,
desandou de vez, passou a usar tamanquinho de salto, calças agarradíssimas,
pulseirinhas e outros adereços. A turma toda gritava: “Marquinhos boneca” e ele
nem dava bola e até rebolava para provocar o pessoal. Dizem que a dona
Encarnacion mudou de bairro por causa da vergonha que sentia. Uma filha virou
puta e o filho mais novo... Era demais para uma mulher conservadora, sofrida e
miserável.
Tempos
depois surgiram notícias do Marquinhos através de uma garota do bairro que
descobriu ele estava trabalhando num salão de beleza. Começou fazendo unhas e
depois cabelos. Era a glória para ele, que adorava conversar com as garotas e
trocar ideias sofre penteados e roupas. Depois disso começou a frequentar o
bairro novamente, mas por causa de outro menino que morava numa rua próxima. Os
dois saiam de tamanquinho e maquiados para a alegria dos fofoqueiros do bairro.
Era um comentário geral sobre as duas figuras diferentes. A família do outro
menino se sentia envergonhada, mas a dona Zelda não abandonou o filho que
continuou morando na casa mesmo contra a vontade do pai que queria que ele
fosse internado em algum lugar bem distante. O irmão, o Luizinho bozó, era
metido a moleque malandro desde criança. Depois de adolescente começou a fumar
maconha e andar com outros “boys” do bairro. Usava calça boca de sino, que era
uma roupa emblemática do pessoal que pitava a canabis sativa. Luizinho bozó
chegou a ser preso, passando mais de um ano no xilindró. Sugeria que ele queria
se mostrar malandro para não acharem que ele poderia ser igual ao irmão.
Mas
Marquinhos continuou com o seu jeito que causava estranheza no bairro. Passou a
se travestir. Vestia-se de mulher e desfilava pela cidade à noite virando
bolsinha. Sua carreira não foi tão longa, pois logo foi contaminado pela AIDS
nos primeiros anos em que a doença começou a aparecer no Brasil. Foi um longo
sofrimento. Vítima do preconceito e da doença virou um trapo humano. Dona Encarnacion,
sua única protetora, morreu de câncer com pouco mais de cinquenta anos.
Marquinhos, homossexual assumido e aidético, morreu aos 26 anos de complicações
generalizadas em decorrência da doença. O menino teve uma vida curta e não viu
a passagem do século, quando prometia soltar a franga na folia e quem sabe na
Parada Gay em plena Avenida Paulista.
Renato Ladeia
Renato Ladeia
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