Adoniram Barbosa ou o João Rubinato nasceu em 1910, na cidade de Valinhos, interior do de São Paulo e mudou-se para Santo André no ABC paulista em 1924, onde passou alguns anos trabalhando como operário e biscateiro antes de ir para o bairro do Bexiga que o revelou para o país e talvez para o mundo. Estaria com cem anos se vivo ainda estivesse. Ainda bem, pois já imaginaram a aporrinhação em cima do sambista? Entrevistas para a televisão, rádio, jornais, revistas e curiosos. O genial velhinho ficaria de saco-cheio e provavelmente todo esse assédio não lhe renderia nenhum trocado para aliviar o seu orçamento. Por isso ele desabafou certa vez quando lhe perguntaram como se sentia sendo tão homenageado: “Homenagem não paga as contas”.
E por falar em homenagens, são várias que estão pipocando por aí para lembrar o maior sambista paulista, que com a sua irreverência, resolveu desmentir o Vinicius de Moraes que teria dito que São Paulo era o túmulo do samba. Com o samba Trem das Onze, ganhou um festival de samba no Rio de Janeiro, em comemoração ao IV centenário da cidade. O Vinicius teve que levar para o túmulo a fama de agourento da nossa paulicéia desvairada. Pessoas famosas não podem falar coisas que possam comprometê-las no futuro. Quem não se lembra do Gerson e aquela propaganda odiosa? Pois é, o publicitário bolou uma campanha e sobrou para o jogador o ônus de carregá-la nos ombros até o final dos seus dias.
E por essas e outras fui assistir ao show do Carlinhos Vergueiro, acompanhado pela “cara-metade” e o amigo sambista e compositor Zeca da Silva, na cidade de Santo André, onde o Adoniram morou alguns anos. Esperávamos a casa cheia e por isso tratamos de chegar cedo para evitar a disputa indesejável de poltronas com pessoas mal educadas. Qual o quê! Uma platéia quase vazia aplaudiu e vibrou com o velho e bom sambista Carlinhos Vergueiro, dono de uma vitalidade incrível, que cantou e contou histórias sobre o homenageado, com o qual conviveu e se tornou parceiro em alguns sambas. Numa delas, ele relata outra versão da história da letra de Iracema. Segundo ele, o Adoniran estava caído por uma moça que não lhe dava a menor chance. Desiludido, avisou a tal que iria matá-la (simbolicamente, é claro) compondo o samba em que sua diva morre atropelada.
Adoniram foi mais do que um sambista, foi também um cronista da Paulicéia. Vivendo e circulando entre os bairros do Bexiga, Mooca e Brás, ele captou o jeito típico do paulistano boêmio, gozador e também sofredor. Com letras simples e usando um português muito distante do idioma de Camões, repleto de italianismos e erros de concordância, ele conquistou o coração dos paulistas e também dos imigrantes. São histórias do homem comum, do trabalhador, do desempregado, do sem teto, que busca sobreviver na grande capital. Saudosa Maloca, que retrata o eterno problema de moradia com as invasões de espaços públicos e particulares pelos sem-teto, revela uma crítica social, mas também um conformismo diante do sistema econômico. Os velhos palacetes assobradados abandonados ainda existem e de vez em quando lemos nos jornais que foram invadidos ou desocupados à força. O edipiano Trem das Onze que passava no Jaçanã apenas para rimar com amanhã lembra o problema do transporte público na maior cidade do país e se tornou a música símbolo dos paulistanos. A Iracema que morre atropelada por atravessar na contramão é mais uma cena do cotidiano paulistano, com os milhares de atropelamentos, interrompendo vidas de crianças, jovens e adultos de uma forma violenta, deixando rastros de tristezas e saudades.
Mas há outra história sobre a carreira de Adoniran Barbosa, contada pelo Walter Silva, o “Pica-Pau”. Adoniran era bem diferente daquela figura brincalhona, irônica e engraçada que conhecemos. Teria sido um sujeito mais sério, que cantava músicas de Noel, como Filosofia, que ele defendeu num programa de calouros. O Adoniran que fez sucesso na paulicéia e depois no Brasil foi criado pelo produtor Oswaldo Molles para um programa de rádio nos anos cinquenta. O personagem foi o “Charutinho”, que ele incorporou até o final dos seus dias. Walter Silva ainda afirmou que o português errado dos sambas foi, muitas vezes, obra dos “Demônios da Garoa”, que imprimiam um tom humorístico às suas músicas.
Adoniran, com português errado propositalmente ou não, deixou sua marca no samba e na cultura paulistana. Até hoje muitos cariocas acreditam que os paulistas falam como nas suas canções; mas mesmo sendo um descendente de italianos meio acaipirado, colocou a paulicéia no panteão do samba. E sobre falar errado, é dele a frase: “A pessoa, pra falar errado, precisa saber falar errado. Se não souber é melhor não falar errado”.
Renato Ladeia
Renato Ladeia
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