Numa multinacional francesa apareceu do nada um inglês contratado para uma posição acima da do meu chefe. Inicialmente, ele não tinha sala e ficou acomodado numa pequena mesa que existia na minha salinha, ao lado do meu superior. Richard era um homem alto, magro e usava grandes óculos e não se incomodava em esticar suas longas pernas para os lados. Poderia pedir a minha mesa e ocupá-la sem maiores cerimônias, mas nunca aventou tal possibilidade. Era sempre um gentleman e revezávamos no cafezinho. Às vezes me servia e em outras eu o servia. Como um bom inglês, sentia falta do chá e eu acabei resolvendo, comprando uma chaleira elétrica que ele pagou com grande prazer. E assim, tínhamos chá todos os dias. O seu Afonso Salmeron Castilho, um velho faxineiro espanhol providenciava a bebida na salinha onde ficavam os materiais de limpeza.
Richard tinha uns hábitos peculiares. Arregaçava a camisa social invariavelmente branca até o antebraço e lá enfiava o maço de cigarros Continental com filtro. Vivia fazendo cálculos matemáticos para todos os problemas com os quais se defrontava e citava com orgulho que havia feito uma faculdade popular que lhe ensinou o caminho das pedras. Chegou ao Brasil com seus pais ainda criança e por isso falava português sem nenhum sotaque.
Passamos algum tempo dividindo a sala e logo foi providenciada uma acomodação para ele no prédio administrativo, onde ficava a diretoria, mas o nosso acordo com relação ao chá continuou mantido e o velho catalão cuidava de levar-lhe o chá diariamente, não sem reclamar por causa das caminhadas diárias para retirar e deixar a garrafa térmica. Mas sempre que estava na sala do meu chefe, Clayton aproveitava para um dedo de prosa com seu “colega” de sala.
Tínhamos boas conversas sobre literatura, em que Shakespeare era quase sempre o tema, mas falava muito sobre a Inglaterra, para onde ia quase todos os anos para visitar parentes e amigos. Contou-me que seus pais eram irlandeses, o que explicava sua tez morena e cabelos escuros e ondulados. Descendia dos “povos morenos” que habitaram a ilha antes da chegada dos anglos e saxões. Marion Zimmer Brandley, em seu bestseller “As brumas de Avalon”, ela menciona essa etnia que ocupou a ilha e suas relações com o Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda.
No final de ano a nossa área era um festival de brindes para os chefes e às vezes também para os funcionários. Recordo-me que ele recebeu uma enorme caixa e ao abri-la viu que era um equipamento eletrônico, que naquela época eram caros. Pediu-me que fechasse a caixa e devolvesse ao fornecedor, pois não considerava ético receber presentes além dos tradicionais.
Mas Richard Clayton foi embora e eu não soube por que razão foi demitido, mas muito provavelmente pelas antigas intrigas corporativas. O fato de ser inglês numa empresa francesa talvez tenha contribuído para sua saída, pois os franceses são mais xenofóbicos em relação às outras nacionalidades, principalmente pela antiga rivalidade entre os dois países. Meu chefe, também gostava dele e nunca entendeu seu desligamento. No dia da sua demissão me cobrou porque o seu chá não foi enviado. Com certeza me esqueci que para um bom inglês, o chá é fundamental, em qualquer circunstância.
Nunca mais soube do Richard, pois naqueles tempos não tínhamos a facilidade do Google, mas lembrei-me de que ele havia feito Administração na antiga ESAN (FEI). Comentou que preferiu a ESAN por quê seu corpo docente tinha mais vivência empresarial e era menos acadêmica.
Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome. Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva
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