Era um domingo, dia bonito, ensolarado, um bom dia para passear. Eram cinco da tarde quando Evaldo com a mulher, filho e sogro foram num chá de bebê. Um casal de amigos estava esperando uma criança e organizaram uma festinha, como é tradição, para angariar presentes para o bebê. O músico Evaldo, de 51 anos, não tinha compromisso profissional no dia e seu cavaquinho havia ficado em casa descansando suas cordas.
Chegando no bairro do Guadalupe, Evaldo viu uma patrulha do Exército, mas deu pouca importância para o fato. Como era um carro de família, com mulher criança e um idoso, nem seria parado e chegariam no horário combinado da festinha.
Mal teve tempo de pensar quando ouviu vários disparos. Devem estar atirando em algum bandido que forçou a passagem, mas quando percebeu que os tiros estavam atingindo a lataria do veículo, desconfiou que o problema era mais sério e parou o carro. Em seguida uma bala o atingiu. Sentiu uma dor terrível e ainda teve tempo de pensar: “Quem fez isso comigo? Eu sou um homem bom, tenho família para cuidar. Sou apenas um músico que levo alegria para as pessoas. Não pode ser a patrulha, devem ser bandidos que entraram em confronto com eles.”
Um catador de material reciclável estava ali próximo e correu para socorrer a família ferida pelos disparos e, também, foi atingido. Que fiz eu? Por que atiraram em mim? perguntou antes de morrer. A mulher, o filho e o sogro do Evaldo, também não entenderam nada. Como é possível soldados do exército atirando a torto e a direito contra pessoas inocentes? Não pediram para o motorista parar para confirmar se havia alguma suspeita.
Eram doze soldados, incluindo o tenente que comandava a patrulha. Quatro dos soldados não atiraram e não se sabe se foi por medo ou por consciência de que não era correto atirar antes de ter certeza. O tenente deu a ordem de comando, pois se não fizesse isso, os rapazes não teriam atirado. Se estivéssemos numa guerra haveria sim a ordem para atirar em qualquer veículo que passasse, pois havia o risco de serem inimigos. Mas, não, não havia uma guerra declarada. Eram pessoas comuns, trabalhadores que transitavam. O tenente alegou que recebeu informação de que havia um carro de traficantes da mesma cor e marca. Mas se os soldados se aproximassem apontando os fuzis alguém reagiria? Claro que não. Por que deu a ordem para atirar sem confirmar se eram mesmo bandidos? Teria recebido a ordem de algum superior? Ou era um comandante totalmente despreparado para ações deste tipo? Ou na escola militar foi orientado para primeiro atirar e depois perguntar?
Foram 257 tiros disparados contra um veículo civil ocupado por pessoas de uma mesma família. Nem um veículo militar num confronto talvez recebesse tantos tiros. Foi um desperdício absurdo de munição paga com dinheiro público e para que? Para assustar bastaria atirar nos pneus ou para o alto. Mas não, era preciso mostrar a força do exército nacional. O mesmo que foi criado para defender o território contra invasões estrangeiras. Os tiros poderiam ter provocado uma chacina, matando uma mulher, um idoso, uma criança, além do Evaldo e um pobre coitado que estava no lugar e na hora errados. Faltou pouco, muito pouco para que a tragédia tivesse sido de maiores proporções.
Quem fez serviço militar sabe que os soldados recebem ordem de comando para uma ação desse tipo. Os soldados não teriam atirado sem uma ordem explícita do comandante. “Apontar, fogo...” É assim que funciona. Não sei se foi justa a condenação para todos (31 anos para o tenente e 28 para os soldados) Um soldado sabe que se desobedecer a uma ordem de comando será punido, muitas vezes rigorosamente. Talvez no STF a punição poderá ser corrigida, condenando-se os verdadeiros culpados: o tenente que comandava a operação e seu superior que não o preparou ou não deu as instruções corretas como proceder em uma abordagem desse tipo. Enfim, ficará para a história ou para as calendas o dia em que o glorioso exército nacional tirou a vida de dois compatriotas inocentes simplesmente por falta de competência ou de simples respeito pela vida.
Num dia desses visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...
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