Encontrei recentemente entre meus livros, um didático de francês que pertenceu a um jovem que trabalhava na mesma empresa que o meu pai. O nome dele era Dirceu Rossoni, escrito em uma caligrafia caprichada numa das páginas.Tudo indica que era um aluno estudioso, pois todas as lições tinham anotações de traduções de palavras para o português. Quem era o Dirceu Rossoni? Lembro-me muito bem dele, pois esteve em casa algumas vezes. Meu pai sempre comentava que eu devia seguir o exemplo do Dirceu. Um rapaz estudioso, honesto e trabalhador. Os pais sempre procuram orientar seus filhos para seguirem bons exemplos e assim evitarem que caiam em maus caminhos pela vida.
Dirceu era bem jovem, estando por volta dos 17 ou 18 anos. Quando entrei no ginásio, que atualmente corresponde ao 5.o. e 8.o ciclo do ensino fundamental, ele trouxe uma caixa de livros que havia usado no ginásio para que eu pudesse aproveitar. Usei alguns e outros ficaram na gaveta ou foram doados e não sei por qual razão o de francês permaneceu comigo depois de várias mudanças. Não o utilizei, pois a disciplina já não fazia mais parte do currículo. Ao manusear o livro, lembrei-me do jovem simpático que passou algumas tardes conversando com meu pai sobre política ou sobre problemas da empresa ou do seu Ernesto, um alemão que era o gerente geral. Eu ficava em silêncio ouvindo as conversas sem poder opinar, pois não tinha idade ou autorização para tal.
Depois de tantas décadas, acompanhando um grupo de fotos antigas de São Bernardo, vi um nome familiar: Darcio Rossoni, que foi morador do bairro Rudge Ramos. Lembrei-me do Dirceu e resolvi perguntar se era parente dele. Depois de mais de 60 anos, tive a curiosidade de saber se estava vivo, se tinha filhos, netos e o que havia feito da vida. O Darcio confirmou que o Dirceu era seu irmão mais novo. Quis saber mais e expliquei a razão. Recebi a triste notícia. Ele informou que o seu querido irmão, com apenas 36 anos de idade, teve uma peritonite, falecendo em pouco tempo, deixando a mulher e três filhos pequenos.
Que eu saiba, meu pai nunca soube do falecimento prematuro do amigo, pois tanto ele como o Dirceu já haviam saído da empresa e perderam o contato. Meu pai por doença e ele por ter conseguido um emprego melhor numa grande multinacional. Nunca mais se viram, mas meu pai sempre se lembrava com saudade do seu jovem amigo. “Era um ótimo rapaz e muito inteligente. Deve estar muito bem”.
Em plena pandemia, comecei uma amizade virtual com o Dárcio e escrevemos muito sobre o passado quase comum. Ele morava no Rudge Ramos e eu em São Caetano do Sul, quase na divisa. Frequentamos o mesmo cinema, o velho e desaparecido Cine Boreal, onde vimos os grandes e inesquecíveis faroestes da época. Relembramos a velha capela, demolida para dar lugar a uma praça, restando no lugar apenas uma placa sobre a primeira capela do bairro. Nunca nos encontramos pessoalmente, mas continuamos uma amizade e nos damos tão bem um com o outro na companhia de tudo, que nem precisamos um do outro. O livro era para mim apenas uma recordação da infância, mas talvez para o Darcio fosse algo precioso, pois amava muito o irmão que partiu tão cedo. Foi aí que lhe ofereci, enviando o livro pelo correio.
A vida tem umas passagens interessantes como essa história que contei. Um livro que já não tinha mais utilidade, foi doado para um garoto, filho de um colega de trabalho e depois de mais de 60 anos, é resgatado e entregue ao seu irmão com um pouco de história e de lembranças. Fiquei feliz em ter contribuído para resgatar um tempo tão longínquo. Como meu pai sempre dizia: o mundo dá muitas voltas e às vezes a gente chega no mesmo lugar. Lembrei-me com saudades do meu pai e o Dárcio do seu irmão caçula. Talvez algumas lágrimas tenham rolado no rosto do velho Dárcio ao ver o nome do mano no livro com sua caligrafia caprichada. Enfim, pode ser que o livro ainda exista daqui a cinquenta anos e alguém o encontre num velho sebo e tentará descobrir quem foi Dirceu Rossoni. Será?
Num dia desses visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...
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