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UM SONHO MATERNAL

">Era uma tarde chuvosa e indisposta. Caminhei por um bom tempo até encontrar minha antiga casa. Estava tudo igualzinho quando eu era criança. As mesmas plantas, a mesma roseira e o antigo pé de babosa que era um santo remédio para problemas com o couro cabeludo. O portão estava aberto e as folhas secas estavam espalhadas pela calçada que acessava ao terraço. O muro com balaústres onde eu me sentava para acompanhar o movimento da rua, parecia ser bem mais alto nos velhos tempos. Agora parecia baixo e poderia ser facilmente pulado por gente mal-intencionada.
               Há quanto tempo que eu não venho por aqui, pensei enquanto sonhava. A porta estava meio aberta e entrei. Onde estará o pessoal? Será que não tem ninguém em casa! Perguntei quase gritando. Mas ninguém respondeu. Fui para a cozinha e minha mãe estava sentada numa cadeira na ponta da mesa. Com o cigarro aceso entre os dedos, ela tragava e soltava fumaça para o alto, observando os desenhos que se formavam.
               Me aproximei, peguei sua mão e desandamos a conversar sobre negócios do passado e coisas do futuro. Não sei se ela respondia, mas sei que me olhava distante. Foi então que eu sugeri que tomássemos um vinho. Ela concordou de imediato, pois apreciava uma boa taça da bebida. Peguei duas taças que estavam na cristaleira repletas de pó e depois de lavá-las fui até a mesa para abrir a garrafa. O velho saca-rolha ainda estava na gaveta da pia, quase todo enferrujado. Será que ainda funciona?
               Abri o vinho e servi. Era, ao que parece, um Cabernet que havia comprado pelo caminho e já nem me lembrava onde. Ao brindamos ela exclamou: “A nossa saúde”. Não me lembro do sabor do vinho. Não sei se era aveludado, marcante, intenso, encorpado... Sei que era um vinho e fomos tomando aos poucos até o último gole. Fiquei meio tonto e cheguei a pensar se seria possível ficar embriagado nos sonhos.
               Enquanto bebíamos olhávamos um para o outro quase como estranhos, mas era ela que estava distante, pensativa com os cabelos desarranjados, o roupão jogado sobre o corpo, com uns furos provocados por cigarros. De repente, ela sacou as cartas de baralho e as espalhou pela mesa dizendo: “Vou ler sua sorte”.
               "Que bom, vamos ver se tem alguma coisa interessante para acontecer e, por favor, não diga coisas desagradáveis", comentei. Tirei a primeira carta e ela sorriu, dizendo: “Está tudo bem...” Tirei a segunda e ela olhou preocupada, mas logo em seguida comentou: “Pensei que fosse, mas não é. Está tudo ótimo”. Fiquei mais tranquilo, mas ela voltou a ficar preocupada com a carta seguinte. Olhou-me nos olhos e abaixou a cabeça. Fiquei preparado para o pior.
               Mas acordei antes que ela me dissesse o que havia visto na última carta. Fiquei também sem fazer uma porção de perguntas. Fechei os olhos e tentei retornar ao sonho para continuarmos a conversa. Sei que isso é impossível, mas não é proibido tentar. Tudo em vão. Lá se foi um sonho com um encontro que talvez nunca mais volte a se repetir, pelo menos da mesma forma.
               Às vezes, sonho com meus pais, irmãos, amigos e sempre estou na velha casa, com seus fantasmas, seus segredos, meus medos. Por vezes, os sonhos são fugazes, outras parecem ser bem longos, mas o clima é sempre o mesmo. Nunca há sol e o ambiente é lúgubre, mas assim mesmo é bom. É uma forma de reencontrar pessoas que já saíram das nossas vidas para viverem em nossos sonhos.



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