A TURMA DO PRIMÁRIO
Estudar depois do primário era
praticamente um privilégio nos anos sessenta, pois não havia colégios públicos
na periferia de São Caetano do Sul. O único ficava no centro e além da
concorrência, ainda era preciso ter QI (ou quem indicou), termo usado na época
para indicações políticas. Assim, quem terminava o primário ou ficava em casa
ou arranjava um subemprego até completar catorze anos, idade permitida para
trabalhar com carteira assinada. Foi o que aconteceu com vários dos meus
colegas do Grupo Escolar Padre Luiz Capra. Poucos deles, como Elias Ladislau
Pinto, Antonio Avelino, Arnaldo, Nelson Cabral de Lima, Ademir Duó,
Piccinini, Roberto Ravagnani, Valter Corotti Trigo, Vagner Benedetti, Valter Belini entre outros foram
estudar em um colégio particular, chamado Barão do Rio Branco.
Mário Corbalan
Gomez foi um dos meus colegas de curso primário que não foi para o ginásio. Era
um garoto bonachão, simpático e sempre sorridente. Ele era o filho mais novo de
uma família de espanhóis e sua mãe já devia ter mais de quarenta anos quando ele
nasceu. Como morava a dois quarteirões
de minha casa estávamos sempre nos encontrando; ora na rua, ora na igreja ou
nas peladas num terreno baldio. Sua mãe às vezes ia chamá-lo durante as peladas
gritando em um espanhol que só ele entendia. Depois do curso primário cada um
seguiu rumos diferentes. Eu também fui fazer o ginásio no Barão do Rio Branco,
graças a uma bolsa de estudos conseguida por contatos políticos do meu
pai. Quanto ao Mário, foi trabalhar com
seus irmãos que tinham um caminhão para transportes ou coisa do gênero.
Com quinze
anos também comecei a trabalhar, mas diferentemente do Mário, consegui um
emprego em um escritório como aprendiz. Às vezes nos encontrávamos no ônibus
quando voltávamos do trabalho. Eu com roupas limpas e mãos macias e ele com
roupas sujas e mãos calejadas pelo trabalho duro de ajudante de motorista.
Confesso que sentia algum orgulho por estar numa situação melhor do que a dele,
mas ao mesmo tempo tristeza pela vida não oferecer as mesmas oportunidades para
todos os meus amigos, principalmente para os companheiros de infância. Nesses
momentos me lembrava de que mesmo tendo poucos recursos, meus pais faziam um
grande sacrifício para que eu e meus irmãos pudéssemos ter uma vida melhor e a
bem da verdade nem sempre correspondíamos.
Chegou
à época do serviço militar, quando pensei que seria o momento de reencontrar os
velhos amigos da escola primária, onde aprendemos as primeiras letras com a
professora Teresa Rami, uma mulher elegante, mas muito rígida com seus alunos.
Mas qual! O Tiro de Guerra da cidade escolheu apenas os jovens que haviam
estudado pelo menos o curso ginasial para o engajamento militar, quanto os
demais, foram dispensados por excesso de contingente. Era na realidade uma forma de exclusão social,
não que fosse maravilhoso fazer o serviço militar estudando e trabalhando, mas
era uma forma de fazer parte de um grupo, de participar de um ritual de
passagem.
Nesta
época encontrei novamente o Mário no ponto de ônibus e ele comentou que estava
desempregado. Como eu trabalhava no departamento de pessoal de uma empresa me
ofereci para tentar lhe conseguir uma colocação. Passei-lhe o endereço da
empresa, mas ele não apareceu, talvez por timidez.
Dois dias depois quando voltava do serviço
militar juntamente com o Ravagnani e Valter Belini, vimos uma movimentação
estranha na casa do Mário e viemos saber que ele havia morrido afogado em uma
represa em São Bernardo. Entramos para
dar os pêsames à família e lá ficamos por alguns minutos. Assim, três
soldadinhos rasos prestaram a última homenagem a um ex-colega de escola
desempregado que por falta de ocupação foi se divertir na perigosa represa que
já havia levado e continuaria levando várias vidas de garotos das redondezas. Antes de sair quebramos um protocolo da
hierarquia militar e batemos continência diante do caixão de um civil que não
havia sido convocado para o exército por não ter ido além do curso primário. Do
pobre Mário só restou uma fotografia com toda a turma, tirada um pouco antes de
concluirmos o curso primário. A sua história terminou cedo, bem antes do tempo.
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