BEATRIZ
Ela era uma
atriz e bailarina e dançava nos sonhos do jovem rapaz. Ele dormia e acordava
pensando nela, imaginando onde ela estaria. Em que palco dançava e representava
para as multidões que a aplaudiam. Em seus devaneios ele via a atriz dançando
só para ele, movimentando seu corpo como um pássaro no ar. As asas que ela não
tinha, flutuavam como leves plumas ao sabor do vento.
Não sabia onde ela morava, mas imaginava que fosse num enorme arranha céu
e de lá descia todas as manhãs como um pássaro e pousava na calçada com a ponta
dos pés. E todas os passantes abriam caminho para que ela seguisse voando em
direção ao palco.
Mas a vida da atriz e bailarina Beatriz era diferente dos sonhos do jovem
apaixonado. Ela morava sozinha num quarto de pensão e às vezes nem tinha o que
comer, pois seu pagamento atrasava por semanas. Chegava exausta, tarde da noite
e deitava-se faminta numa cama imunda e fria. Encolhia-se como feto no útero
para suportar o frio da madrugada paulista. Enquanto isso, o jovem continuava a
vê-la todos os dias possíveis no palco e ficava esperando que ela passasse e o
cumprimentasse para então viver uma grande história de amor. Mas ela saia pelos
fundos do teatro com seu grupo e quando o dinheiro dava, iam festejar numa
pizzaria popular. Lá comiam e bebiam, cantavam e falavam por horas até a
madrugada.
E o menino continuava a perseguir a bailarina e atriz, sonhando com os
sonhos dela, construindo em sua imaginação uma vida tão diferente da vida real,
até que numa noite, o seu sonho estaria prestes a se realizar. Descobrindo por
onde a atriz e bailarina desaparecia depois do espetáculo, colocou-se de
plantão a espera do final que não assistira totalmente. Enfim, lá estava ela
saindo pela porta dos fundos do velho teatro. Os cabelos molhados depois de um
rápido banho, com o casaco ainda jogado sobre as costas ela desceu a escada
onde estava o maior de todos os seus fãs. Ela mal olhou para aquele frangote
postado no final da escada com as mãos enfiadas nos bolsos de uma calça jeans
bastante surrada e o olhar fixo na sua diva que saia dos sonhos do palco e
entrava em sua realidade.
Ele não disse uma palavra e passou a seguí-la como um fantasma,
acompanhando sua trajetória pelos becos mal iluminados, pelas calçadas mal
conservadas, pelas ruelas repletas de desvalidos e mulheres que se ofereciam
por preços vis. Nada tirava sua atenção. Seu olhar era fixo e determinado e ele
só parou quando ela entrou em uma pensão barata e desapareceu como se tivesse
entrado na última porta de um pequeno purgatório. Ele ficou parado na calçada a
olhar para as janelas, tentando imaginar onde ela estaria, em qual quarto se
despiria e deitaria seu corpo de artista numa solitária cama. Uma luz se
acendeu e ele pode observar um vulto que se movimentava atrás da janela
embaçada pela poeira e poluição da cidade. Ali permaneceu até que a luz se
apagou e caminhou em seguida sofrendo pelo caminho de volta só de pensar na
solidão de um pequeno e sórdido quartinho de pensão que a sua amada se
aconchegava antes e depois de viver a catarse do palco.
Os dias que se seguiram se tornaram rotina com o jovem esperando a atriz
sair do teatro e caminhar apressadamente pelas ruas e becos sujos até sua
morada. Mas a temporada estava com os seus dias contados e se encerraria no
final de semana. O que faria sem vê-la? Certamente padeceria de saudades... Seria
preciso que o espetáculo se prolongasse por toda a vida para que ele pudesse
vê-la e ouví-la para sempre, pois só assim conseguiria ser feliz.
No grand finale ele a seguiu desesperadamente, mas ela estava acompanhada
de sua trupe e foi para um restaurante para comemorar a despedida de mais uma
temporada de trabalho. Ele também entrou no restaurante sentando-se no balcão pedindo
uma bebida, que desceu amarga e áspera pela sua garganta. Ele observava Beatriz
com seu grupo, que conversava, ria, gesticulava e todos na mesa acompanhavam
seus belos movimentos que parecia os de um pássaro. Passado algum tempo, ela
levantou-se, fez sinal de que estava cansada, esgotada e precisava descansar
seu belo corpo para o dia seguinte, que prometia cheio de compromissos e
problemas mal resolvidos.
Ele a acompanhou com os olhos, pagou sua conta e a seguiu como um zumbi
pelos mesmos caminhos que fizera durante vários dias. Ela entrou em um beco
escuro para cortar distância. Ele se aproximou e a tocou. Ela era de carne e
osso. A pele fria e suave. Ela tentou gritar, mas ele tampou sua boca com uma
das mãos e com a outra tentou controlá-la segurando seu frágil pescoço. A
resistência de Beatriz foi diminuindo e ele pensou que ela estava enfim se
entregando a ele, que seria a única pessoa que verdadeiramente a amava. Ela
caiu em seus braços, fria, pálida e sem vida. Foi o seu último espetáculo.
Triste, sem público, sem luzes e sem aplausos. O resto foi um eterno silêncio que ecoou pelos
becos, bares, ruas e avenidas como uma canção sem letra e sem melodia.
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