RELÍQUIAS DA CASA VELHA
Uma casa tem muita
vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que
passou, da felicidade que se perdeu. (Machado de Assis, em Relíquias da Casa
Velha).
Machado de Assis deu o nome de Relíquias da Casa
Velha a um livro de contos, mas bom seria que tivesse escrito um belo conto com
esse nome, pois as casas velhas guardam lembranças, segredos, tristezas,
alegrias e às vezes tragédias. De minha parte não tenho a pretensão de
escrever um conto, ainda mais com esse título, mas vai aqui uma modesta crônica
me apropriando do nome do livro do nosso maior escritor. A casa velha a que me
refiro é onde passei minha infância e juventude num bairro de São Caetano do Sul.
O inquilino saiu e foi preciso fazer a vistoria do imóvel. A
casa estava até bem cuidada depois de alguns anos alugada. Alguns tacos
soltos, um arranhão na pintura, mas nada muito grave que demandasse despesas
para reparação.
É difícil deixar de se envolver pelas emoções quando retornamos à casa velha,
mesmo que não seja tão antiga. A casa deve ter mais de sessenta anos e foi
construída quando a cidade ainda tinha alguns resquícios rurais. O bairro
emergiu numa antiga fazenda dos primeiros imigrantes italianos que para aqueles
lados vieram e na minha infância ainda se podia ver vacas pastando em terrenos
baldios. Do quintal avistava-se uma velha olaria, construída no final do século
XIX, que ainda permanece em minha memória como um velho quadro rupestre. Um
pouco mais distante, no alto de um outeiro, havia uma antiga sede de
fazenda, com muitas portas e janelas, que muitos diziam ser mal assombrada.
Nunca ninguém viu assombrações por lá, mas os mais velhos gostavam de apimentar
tais histórias para as crianças perderem o sono. Hoje lá funciona a Faculdade
Mauá de Engenharia.
A minha casa velha continua lá, mantendo a mesma estrutura dos últimos
cinqüenta e cinco anos, quando foi reformada e ampliada. As mãos do meu pai e
seu suor estão ainda presentes em vários espaços, pois como o orçamento era
curto, ele dedicava os fins de semana para fazer um reparo ou outro. Alguns
defeitos de construção continuam e nunca foram corrigidos e ele sempre
lamentava com seu olhar crítico, lembrando a inabilidade do pedreiro que passou
por lá e deixou sua indelével marca. A realidade é que já não há vida na casa e
as lembranças estão apenas em minha memória e dos meus irmãos, mas as paredes,
portas e pisos, foram testemunhas inertes de um tempo que não tem retorno.
Minha irmã mais velha lembrou que na sua infância a casa parecia enorme, uma
imensidão. Parece que há uma proporção entre o nosso tamanho e o espaço em que
vivemos ou pensamos o espaço de acordo com o nosso tamanho.
Naquele grande vazio senti saudades dos móveis que ocupavam aqueles espaços,
como os da sala de jantar em madeira canela. Era uma madeira escura, parecida com
imbuia, estilo provençal, bastante em moda nos anos cinqüenta, com uma mesa que
dobrava de tamanho e onde sempre cabia mais um. Fazia parte do conjunto um bar
todo espelhado que nunca tinha bebidas, a não ser um champagne que ficou por lá
vários anos até que eu tive a infeliz ideia de abrí-lo para experimentar um
pouco e resultou num desastre total, com o espumante espalhado pelas paredes e
um sermão inesquecível. Havia também uma bela cristaleira onde eram guardados
um jogo de taças e copos que nunca se usava para evitar que se
quebrassem. Na parede do lado oposto a porta de entrada havia um grande
quadro com uma cópia de pintura barroca de Cristo com o coração exposto, com
uma larga moldura cheia de detalhes. Meu pai contrário a iconoclastia discutia com minha mãe sobre a inconveniência de se manter o quadro na sala,
principalmente quando ele recebia a visita de algum amigo ou parente
protestante. Muitos anos depois minha mãe, muito a contra gosto, resolveu
transferir o quadro para o seu quarto, mesmo depois da morte do marido. Lá o quadro permaneceu até o momento em que sua mente começou a se desconectar da
realidade e a casa precisou ser desativada. Nenhum dos filhos quis ficar com o
quadro, que foi doado, juntamente com alguns móveis, para uma instituição de
caridade. A pessoa que recebeu a doação olhou para o quadro com desdém, mas
aceitou por causa da moldura e do vidro.
Uma presença constante na sala, quando não estava no conserto, foi a nossa
primeira televisão de marca Invictus, cuja fábrica não existe mais e que deve
ter falido ou incorporada por outra maior. Diante dela a família se
reunia à noite para assistir os seriados dos anos sessenta, como Bonanza,
Zorro, Roy Rogers, além dos jogos de futebol e as lutas livres, que meu pai era
fã incondicional, fato que gerava alguns conflitos de preferências. Outro
objeto que tinha um papel especial para todos nós era um velho relógio cuco,
hoje com uma das minhas irmãs. Recordo-me que quando foi comprado ficamos pelo
menos uma semana sem dormir direito, pois ele cantava de meia em meia hora. Com
o tempo nos acostumamos com o “passarinho chato”, mas durante o dia era até
divertido ouvi-lo “cantar”.
Outro lugar especial era o quarto dos meus pais, local em que só entrávamos
quando minha mãe fazia as suas sessões de contadora de histórias. Para isso era
preciso que meu pai estivesse de bom humor e aceitasse dividir a cama com os
cinco filhos que se acotovelavam para ouvir os velhos contos da carochinha e
outras histórias. Minha irmã mais velha, que já conhecia todas, ia pedindo mais
e mais até o momento em que meu pai colocava um ponto final nos serões.
Pedíamos a bênção e íamos para os nossos quartos sonhar com as emocionantes
aventuras de João e Maria e do nosso tio boiadeiro pelos sertões do Mato
Grosso. No quarto existiu durante muito tempo, um velho e enorme baú onde
eram guardados estranhos segredos, pois estava sempre trancado e a chave era
escondida por minha mãe em um local inexpugnável.
Pais mortos, inventário feito, talvez tenha chegado a hora de vender o imóvel,
que poderá ser demolido para a construção de um prédio de apartamentos. Estamos
preparados para isso? Talvez ainda não. Minha irmã chorou ao entrar na casa e
nem quis ouvir a corretora falar em vender o imóvel. Estamos todos presos ao
passado e não temos coragem de romper o cordão umbilical. Talvez seja melhor
deixar o problema para os nossos filhos, que despojados de lembranças tomem a
decisão final sem muitas emoções.
Fechamos a porta e saímos carregados de antigas recordações que a cada dia vão
ficando mais leves em nossas memórias. Ainda paramos no pequeno canteiro que
nossa mãe cultivava e onde um velho pé de babosa ainda reina majestoso. Ela,
sempre prestativa, não se incomodava em cortar umas folhas para os vizinhos que
vinham pedir para algum remédio caseiro, mas ficava uma fera se alguém pegasse
sem sua autorização. A roseira também continua insistindo em sobreviver depois
da partida de sua antiga dona e quem sabe ainda dê rosas na próxima primavera.
É bom que ela se apresse antes que algum construtor resolva botar abaixo
aquelas velhas paredes que guardaram as nossas histórias e segredos, alguns
esquecidos, outros ainda vivos e sabe-se lá por mais quanto tempo.
Maio de 2013.
Oi, Deladeia! Sou fã de Machado até o caroço de minha alma [sorrio]. Parabéns pela escolha! Adorei e quero deixar um convite. Gostaria de te receber em meu blog para uma leitura e comentário: http://jefhcardoso.blogspot.com Abraço!
ResponderExcluirBrilhante a crônica " Lembranças da casa velha ". Brilhante. Não é porque eu sou amigo do cara não. Brilhante. Mesmo.
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