Pular para o conteúdo principal

A VIZINHA DO LADO

Todo bairro tinha a sua moça elegante, sempre bem vestida, maquiada que usava corretamente o vernáculo. Havia mais de uma, mas a Frida era especial, principalmente porque morava quase em frente a nossa casa e desfrutávamos de alguma intimidade com ela e sua família.  Era uma secretária, mas também uma equilibrista, pois não era fácil andar de salto alto naquelas calçadas mal conservadas da velha Vila Marlene.  Ela navegava perto dos trinta anos e todos a consideravam uma solteirona ou uma balzaquiana, sem muita chance de subir ao altar para os padrões da época.
Mas Frida não dava bola para a torcida e tampouco para os rapazes vizinhos que não estavam à altura do seu cabedal. “Imagine que eu me casaria com um pé rapado para passar os meus dias lavando cuecas. Nem pensar”, repetia sempre quando alguém lhe perguntava sobre casamento. A nossa musa, apesar da elegância e modos educados, não dispensava uma cervejinha e se tivesse uma cachacinha antes, melhor ainda. Nas épocas de festas ela passava lá em casa para bebericar, ficando alegre e falante. Nessas ocasiões ficava desinibida e se aventurava a falar algumas frases no idioma de Shakespeare para impressionar a gente, principalmente a mim, que estava no início do ginásio e mal sabia o verbo to be. Tinha com minha mãe uma certa cumplicidade com relação à quebra de padrões de comportamento. As duas fumavam e bebiam nas festas, para o pasmo das vizinhas, sempre muito conservadoras.
Quando ela descia do ônibus com as suas saias justas era esperada pelos rapazes que se acotovelavam na padaria em frente para apreciar alguns centímetros de pernas brancas e bem cuidadas, sempre com finas meias de seda. Mas ela descia a rua sempre altiva e elegante como se aqueles reles mortais não existissem. Eles se conformavam que a Frida era muita areia para os seus caminhõezinhos e se contentavam em apenas babar para a mais elegante do bairro, uma mulher parecida com as artistas do cinema e da televisão. A Frida virou folclore e um tal de Dito, que arranhava um violão, cantava: “A Frida quando passa, com seu vestido grená, todo mundo diz que é boa, mas como a Frida não há...”. Até pensei que o Dito era compositor, mas descobri depois com meu amigo Zeca da Silva, que ele apenas parodiava um velho samba do Caymmi.
Mas sem um prévio aviso a nossa diva desapareceu. Foram meses sem a sua presença esbelta mexendo com as cadeiras para lá e pra cá e com o juízo da gente, quando descia a nossa rua, desviando-se dos buracos das calçadas. Sua mãe dizia que estava morando perto do emprego, pois estava trabalhando até tarde. Foi uma pena para nós, garotos, que também apreciávamos a elegância e o corpinho de violão da musa do bairro e, muito mais, para os rapazes mais velhos que precisaram se contentar com as “deselegâncias discretas” das demais garotas das redondezas.
Enfim, o segredo foi revelado, com meus olhos que a terra há de comer, vi a nossa bela Frida em estado adiantado de gravidez numa rua no centro da cidade. Foi um choque, pois sabia que ela não estava casada. Chegando em casa relatei a novidade, mas minha mãe ordenou que o assunto deveria morrer ali, pois não queria magoar a amiga e sua família.  Para evitar maledicências no bairro, ela foi morar por uns tempos na casa de um parente até o final da gravidez.  O pai da criança soube-se depois, era o seu gerente na empresa onde trabalhava e o pior, era casado. Que infelicidade para a Frida, mãe solteira numa época em que essas coisas eram tabus insuperáveis. Nunca mais ela poderia expressar aquela altivez de outrora e teria ainda de suportar comentários desairosos sobre a sua honra.
Mas o tempo cura todos os males e, com a filha, ela voltou para a casa dos pais. Para os curiosos, a avó, uma alemã austera e de pouca conversa, dizia que era uma sobrinha, cuja mãe estava doente e não podia cuidar da menina.  A garota cresceu e com o tempo o pai separou-se da mulher e foi viver com a Frida e a criança. O segredo foi preservado e com ele a honra da Frida, uma moça de fino trato, que enfeitava e alegrava as ruas do bairro quando passava com seu vestido grená.

Comentários

  1. Viajei com o "causo" da Frida. Você tem razão. Naquela época havia fridas. Saudosa era. Parabéns. Dédo

    ResponderExcluir
  2. Ehê, parceiro ! Voltando em grande forma, heim ?
    Você vai dizer que estou a lhe bajular mas a crônica é excelente. Só faltou dizer que os meninos da região às vêzes demoravam-se no banheiro pensando em Frida.
    Abração,
    Zeca

    ResponderExcluir
  3. Parabéns Renato !

    As crônicas estão cada vez melhores e cativantes !

    Tá na hora de partir para um romance, como uma autobiografia, por exemplo.

    Material literário já deu pra perceber que você tem de sobra...

    Abraços, extensivos à Célia e Mariana.

    Michele

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...

A ROCA DE FIAR

Sempre que visitava antiquários, gostava de ficar observando as antigas rocas de fiar e imaginando que uma delas poderia ter sido de uma das minhas bisavós e até fiquei tentado a comprar uma para deixá-la como relíquia lá em casa. Por sorte, uma amiga de longa data, a Luci, ligou um dia desses avisando que tinha um presente para nós, que ficaria muito bem em nossa casa. Para minha surpresa, era uma roca de fiar, muito antiga, que ela ganhou de presente. Seu patrão se desfez de uma fazenda e ofereceu a ela, entre outros objetos, uma roca, que ela gentilmente nos presenteou. Hoje uma centenária roca de fiar está presente em nossa casa e, além de servir como objeto de decoração, é a alegria do Tom, meu neto, que fica encantado ao girar a roda da roca. Para ele é um divertimento quando vem nos visitar e passa algumas horas em nossa companhia. Ele grita e ri de modo a ouvir-se de longe, como se a roca fosse a máquina do mundo. Recordo-me, quando criança, que minha mãe contava história...

BARRA DE SÃO JOÃO

Casa  onde Pancetti morou Em Barra de São João acontece de tudo e não acontece nada. As praias são de tombo e as ondas quebram violentamente na praia. Quase ninguém as freqüenta a não ser algum turista desavisado, preferencialmente os paulistas. Mas o lugarejo é tranqüilo, com ruazinhas arborizadas com velhas jaqueiras e com muitas primaveras nos jardins, dando uma sensação gostosa de paz e tranqüilidade há muito perdidas nas grandes metrópoles. Foi lá que nasceu o poeta Casimiro de Abreu e onde foi sepultado conforme seu último desejo. O seu túmulo está no cemitério da igreja, mas dizem que o corpo não está lá e que foi “roubado” na calada de uma das antigas noites do século dezenove. A casa do poeta, restaurada, fica às margens do Rio São João é hoje um museu onde um crânio humano está exposto e alguns afirmam que é do poeta dos “Meus Oito Anos”. Olhei severamente para o crânio e questionei como Shakespeare em Hamlet: “To be or not to be”, mas fiquei sem resposta. O cas...