Trinta anos sem o Café Luá
O pessoal da velha guarda do ABC deve lembrar com saudade do velho Café Luá, na Rua Manoel Coelho, em São Caetano, no final dos anos 70. Era um misto de um café parisiense com bar carioca dos tempos da bossa nova. A arquitetura do espaço era bem concebida, com um mezanino de onde se podia avistar o palco, onde sempre bons músicos estavam lá para proporcionar aos freqüentadores o que havia de melhor na música popular brasileira.
Os cafés servidos eram sofisticados e com uma imensa variedade, atendendo aos gostos mais refinados. E não faltavam os chás que podiam ser degustados pelos abstêmios ou após uma noitada pesada quando a madrugada dava os seus últimos suspiros antes dos primeiros raios de sol penetrarem pelas amplas janelas.
O Zeca, sócio e idealizador do espaço era um perfeito anfitrião, estando sempre a postos para recepcionar os velhos amigos. Como o lema do Café Luá era “Até o último freguês”, isso lhe custou sérios problemas. O primeiro foi com a sua namorada, pois o Lua passou a ser um rival de peso. O segundo foi sua saúde. Zeca ficou cadavérico, parecendo um esqueleto ambulante, pois continuou suas atividades profissionais em uma multinacional. Assim, mal tinha tempo para dormir.
O velho Café Luá foi fruto de um sonho concretizado, mesmo que de forma efêmera. Zeca da Silva, depois de ter concluído a faculdade, acreditava que era preciso manter a turma unida, cantando, compondo e conversando naqueles tempos sombrios. Esse relacionamento não podia acabar depois da formatura. Era preciso aglutinar, criar laços cada vez mais profundos para que pudéssemos fazer a travessia sempre unidos, mantendo os mesmos valores que havia gerado o grupo.
Recordo-me que em uma das muitas festas de aniversário o Zeca chamou alguns amigos de lado e falou sobre a sua idéia de criar um espaço cultural, onde a turma se encontraria sempre, sem precisar marcar hora ou data. Seria um espaço livre, de todos, com um violão e uma cervejinha sempre gelada. Seria sempre uma festa ou um sarau dois ou três dias por semana. A idéia entusiasmou todo o grupo que também compartilhava com a preocupação do Zeca. Tanto foi real que saímos à procura de um imóvel para alugar. Num dos imóveis visitados e quase alugado, o proprietário perguntou se a finalidade seria comercia, pois achou estranho aquele bando de jovens procurando um imóvel. O Milton Eto, ingenuamente, disse que era para a turma se reunir, cantar e discutir política. Como estávamos em plena ditadura militar, não é difícil adivinhar que o dono da corretora encerrou a conversa ali mesmo. Por outro lado, a racionalidade também começou a pesar. Como vai ser a cobrança? E se alguém não pagar, como é que fica? Quem será o responsável pelo aluguel? A idéia, por estas e outras razões não foi adiante.
Mas o Zeca não desistiu e partiu para outro projeto: um bar no estilo dos bares cariocas dos anos cinqüenta, onde emergiram grandes talentos da música popular brasileira como Tom Jobim, Johnny Alf, Vinicius etc. Era uma tentativa de reviver, nos anos 70, o mesmo clima boêmio do Rio de Janeiro em uma cidade do ABC paulista. Será que daria certo? Ele pagou para ver e com um sócio partiu para a ação. Alugaram uma velha casa, que foi totalmente reformada e estruturada para dar lugar ao projeto boêmio. Estava criado o Café Lua, um dos mais sofisticados redutos boêmios que já existiu no ABC.
O mais importante de tudo era o espaço destinado aos músicos, principalmente os amigos que teriam um lugarzinho para tocar e cantar sem a necessidade de convite. Essa era a essência do projeto do seu idealizador, que resgataria assim o seu antigo sonho.
Inicialmente as coisas estavam indo muito bem, mas com o tempo foram surgindo os velhos problemas de uma atividade comercial. Os amigos nem sempre podiam freqüentar a casa da forma como gostariam, pois os preços eram um tanto salgados para manter o padrão dos serviços e produtos. Como os amigos, principalmente os músicos, não podiam freqüentar assiduamente o bar, foi preciso contratar músicos profissionais e o espaço acabou perdendo parte do romantismo inicial.
Além do pessoal do “Boca da Noite”, composto pelo Valtinho, Marcão, Salvelino, Jorginho, Lole, Itamar, Luis, Finóca e a cantora Claudia Regina, que não está mais entre nós, muita gente boa se apresentou no Café. O Oscar de Vitto, que era da turma, se apresentava esporadicamente, como amigo da casa. Saulo de Tarso, “o maior do Brasil”, foi atração exclusiva durante algum tempo. Carlinhos Kalunga, violonista, compositor e arranjador, foi também uma presença constante. Aliás, foi com o Carlinhos que aconteceu uma cena pitoresca no Café. A Isaurinha Garcia (1923-1993), cantora da velha guarda e considerada a Edit Piaf brasileira, foi convidada para cantar na casa. Para evitar transtornos de última hora, o Zeca foi buscá-la em sua casa em São Paulo, bem mais cedo. Chegando ao Luá, ela pediu uma bebida. Pensou-se em uma bebida leve, já que ela estava a trabalho. Longe disso, pediu logo um conhaque e copo cheio. E não ficou por aí. Tomou vários conhaques durante a noite, sempre em dose dupla. E a Isaurinha cantou, cantou, se emocionou, chorou e, de repente, desabou em cima do Carlinhos que a estava acompanhando ao violão. Foi um tombo espetacular, que quase colocou o músico a nocaute. Depois disso, ela ainda conseguiu cantar algumas canções sentada num banquinho. O músico ao falar sobre o episódio lembra-se que parecia um tsunami que desabava sobre ele.
Mas numa tarde, ao abrir a casa, o Zeca teve um choque ao ver a frase “Clube Gay” pichada na parede. Não descobriu a razão, por outro lado também não perdeu tempo em investigar, mas jogou a toalha, saindo da sociedade. Não usufruiu nada no negócio em termos financeiros, mas ganhou no prazer de ouvir bons músicos e receber os amigos. De sobra ficaram também um corpo esquelético e o stress. Tinha investido seu tempo livre e algumas economias e no final saiu como um passarinho, livre do estafante lema “Até o último freguês”, que o obrigava a sair de lá com os primeiros raios de sol.
E assim o Café Luá foi desaparecendo, pois sem a presença do principal anfitrião, a casa perdeu a sua alma se transformando em mais um bar, sem o antigo charme. Algum tempo depois deixou de ser uma casa noturna para se transformar num restaurante. Trinta anos depois, restaram na memória os bons momentos no Café Luá, onde se cultuava a melhor música popular brasileira. O burburinho nas mesas, um velho samba do Chico, a lua vigiando a noite, os amigos taciturnos e o café quente na madrugada; tudo isso ainda está presente em nossas retinas fatigadas. Acabou, sem choro, nem vela, mas ficou uma alegria triste, daquelas que sentimos ao ouvir uma bela canção numa manhã chuvosa.
Para o Zeca, ficou um pôster com a figura do Noel e o nome da casa, como troféu e os velhos e queridos amigos, com quem ainda hoje mantem profundos laços de amizade, compartilhando alegrias, tristezas e também bons sambas. Há também um samba de uma compositora que não conheceu o Luá, mas ouviu seus pais falarem muito dele, e que em breve será lançado em um CD.
Enfim, o Café Luá é apenas um pôster na parede, mas ainda alimenta uma saudade danada dos nossos bons tempos. “Evoé Zeca da Silva, sambista, compositor e empreendedor. Durou pouco, mas foi infinito enquanto existiu”.
Renato Ladeia
Renato Ladeia
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