A travessia de Nelson Ladeia.
Poucas pessoas leram realmente o Grande Sertão: veredas. É uma narrativa complexa,em que o narrador conta a história para alguém que pode ser o próprio escritor ou o leitor. A narrativa também não segue uma sequência linear, temporal. Há avanços e retorno no tempo. Riobaldo, o narrador, admite que o contador de história tem poder sobre o passado, o presente e o futuro. O autor inventa palavras o tempo todo na voz do seu narrador, a sintaxe é complexa e repleta de metáforas que fazem a leitura um um trabalho nada simples. É preciso de concentração, paciência e reflexão. Mas esta crônica não é sobre o livro, mas sobre meu irmão Nelson para quem emprestei uma antiga edição do Grande Sertão: Veredas do Guimarães Rosa. Ele estava apaixonado pelo escritor após a leitura de Sagarana. Leu e releu o livro e todas as vezes que nos encontrávamos ele dizia que o Grande Sertões: veredas havia se tornado o seu livro de cabeceira, sua bíblia. Mas para mim a edição tinha um sabor especial, pois foi um presente de uma professora do colégio e para resolver o problema tratei logo de comprar uma edição mais recente para que ele continuasse lendo e relendo o romance.
E assim quase todas as vezes que nos encontrávamos falávamos das aventuras do Riobaldo, o Tatarana nos confins dos Sertões das Gerais, cujas sábias palavras sempre tornavam obrigatória uma releitura do livro. Um trecho sobre o rio ficou em nossa memória: “O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar das montanhas. Rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas, marimbús, a sombra separada dos buritizais, ele. Recolhe e semeia areias. Fui cativo, para ser solto? Um buraquinho d’água mata minha sede, uma palmeira só me dá minha casa”. Isso sintetizava o modo de ser do Nelson. Não era ambicioso. Qualquer coisa bastava.
E o Nelson continuava mergulhado nas aventuras pelos sertões, acompanhando Riobaldo. Ele que nasceu e cresceu na cidade tinha uma paixão sem fim pelo interior, pela cultura rural. Pesquisava objetos, ferramentas, carroças e os reproduzias em miniaturas nas suas horas vagas. Trabalhava caixas de frutas e habilmente as transformava em objetos de arte. Em Caminhos e Fronteiras, de Sérgio Buarque de Hollanda, ele bebia da cultura do Brasil caboclo, descobrindo as origens de coisas como o monjolo, engenho de açúcar... Ouvindo a velha canção do Ari Barroso que dizia “Tenho saudades do Brasil, Caipira...” ele se inspirava para criar coisas que as pessoas se apaixonam ao ver. Quando lhe perguntavam: Você vende? Ele respondia: Ah essas coisas não tem preço. São horas e horas de trabalho. Como vou avaliar isso?
Até a adolescência, quase todos os anos, íamos para a Fazenda São Vicente, em Lavínia. Lá ele garimpava coisas da terra. Um ferro de marcar gado do começo do século passado que estava abandonado na Tulha era para ele uma relíquia guardada com carinho. O prazer para ele começava pelo trem que cortava São Paulo rumo ao oeste. Ele permanecia estático na janela, contemplando a paisagem. Lá acordava cedo para ouvir os pássaros pela manhã e sabia os nomes todos e imitava os cantos com maestria.
Quando criança ele tinha medo de assombração e de trovão. Escondia-se embaixo da cama para se proteger. Nossa irmã mais velha, ainda uma menina, o protegia enquanto nossa mãe estava no trabalho. Na rua não gostava de brigas e os outros meninos encaravam isso como covardia. Mas não era nada disso. Sua visão de mundo começava a ser construída como uma pessoa pacífica e calma, que preferia o diálogo ao confronto.
Ele era o nosso caçula, o menino esbelto e dono de belas e louras chucas que minha mãe protegia como um tesouro. Cresceu, descuidou-se dos estudos, preferindo as aventuras e sonhos. Gostava de música e tinha um ouvido excepcional. Meu violão abandonado por falta de aptidão foi descoberto por ele e aos poucos foi extraindo, sem professor, sem orientação nenhuma, belas notas musicais. Um dia me surpreendeu ao solar uma canção do Chico Buarque, compositor, cujo trabalho ele sempre admirou. Aprendeu capoeira e se tornou um mestre, mas via nisso apenas uma arte entre música e dança e nunca como um instrumento de agressão ou mesmo defesa. Como diria o Riobaldo: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.
Mas a doença foi cruel e em menos de dois meses, um homem forte, saudável, corpo de atleta, estava em um hospital sem esperanças. Em nossa última conversa, ainda sobre o Grande Sertão: veredas, ele repetiu a frase constante de Riobaldo: “É mano, viver é muito, muito perigoso” e eu estou perto da travessia. Fez sua última recomendação: “Não quero o caixão aberto. Não quero que me olhem com pena”. Prefiro que as pessoas se lembrem de mim vivo”. E assim partiu Nelson, meu irmão, meu amigo, cuja ausência vai doer em mim eternamente.
Renato, foi um prazer conhecer o Nelson. Você fez uma bela crônica (pensei que ia falar do Grande Sertão: Veredas!) sobre uma bela alma. Triste a partida, mas bela a herança, esse eterno na memória dos que o amaram e amam.
ResponderExcluirUm abraço amigo.
Oi Compadre,
ResponderExcluirQuando vi pela primeira vez as carroças e outras peças em miniatura lá na sua casa tive uma baita surpresa ao saber que era seu irmão, Nelson,m que fazia aquelas obras de arte. Não tive a oportunidade de conhecê-lo bem mas tenho idéia que, realmente, foi uma pessoa de sabedoria. Ele vai para um cantinho dentro da gente habitado somente pelos melhores sentimentos possíveis. De vez em quando a gente vai lá...
Como no interior, agora a pouco, antes de ler seu e.mail, encontrei um sabiá dentro do nosso escritório. Deu uma revoada e saiu pela janela sem se machucar. Pensei: alguém morreu ou vai morrer; ele veio me avisar na frente que era um "Caipira".
Compadre, só o tempo...
Um grande abraço,
Jorge Moscardi Maharis
Ultimamente, tz pela idade que já ganha várias dezenas de anos, temos tido muitas partidas e algumas chegadas de gente nova no pedaço prá nos ensinar o milagre da vida. Indecifrável!
ResponderExcluirMas tudo é tão perfeito que a cada partida, mesmo com a dor da saudade ou da incompreensão do que é a morte física, o bebê que por acaso habita nossa casa não deixa de sorrir e encantar.
Amigo, já perdi tantos amores que ao meu ver partiram muito cedo que penso o que será quando todos tivermos partido para o mundo do desconhecido, onde tz não haja cavalinhos e nem carrocinhas de madeira. Não sei, nada sei.
Mas gosto de acreditar, ainda que por comodidade minha, que em algum lugar nos encontraremos.E com o Nelson tb.
Abraços fraternos. Geanete
Acabei de ler agora o recado que o Jorge mandou. Emocionante. Uma das frases que mais me calaram fundo no "Grande Sertão: veredas", livro que norteou também a vida do seu irmão afirma: "As coisas que acontecem é porque já estavam ficadas prontas". Acredito nisso cada vez mais. Assim como acredito cada vez mais que todas essas pessoas paras as quais você enviou o e.mail são também seus irmãos, não de sangue, mas de fé. Não tem diferença nenhuma.
ResponderExcluirGrande abraço, mano.
Zéca
uerido Renato,
ResponderExcluirVi o Nelson uma única vez há muitos anos, quando se apresentou na faculdade um conjunto de capoeira e ele era amigo do pessoal. Anos depois você e a Celinha nos presentearam com um carro-de-boi belíssimo feito por ele, que temos até hoje sobre a lareira. Eu fiquei encantado com aquela pequena obra de arte. Tente copiá-lo algumas vezes mas nunca obtive o sucesso desejado. Mas aquelas tentativas me auxiliaram a tomar a decisão de trabalhar com madeira, quando saí do Banco do Brasil.
Há pessoas que nos marcam sem saberem.
Um grande abraço, meu velho amigo.
Dédo
É tio....
ResponderExcluirO único modo de sobrevivermos a uma perda (pelo menos pra mim), é olhar ao redor e procurar novos objetos de amor (cultivando a intimidade com as pessoas que fazem parte de nossas vidas).
Só assim, quando alguém tão próximo ou ligado a nós, for irremediavelmente tirado de nosso alcance, saberemos que fizemos o que era possível, para lhe dar o que podíamos lhe dar e, ao mesmo tempo, que tentamos preservar em nós a capacidade de amar....
"A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam." - Graande Sertão...
beijos de quem te gosta...
Pois é meu tio querido,
ResponderExcluirEu nao me canso de ler as coisas que o senhor escreve sobre o meu pai;
é muito triste chegar no dia dos pais e nao tê-lo comigo...
Meu pai foi um homem maravilhoso e muito digno, um homem pra se ter de exemplo, ele era simples e honesto, muito inteligente e amoroso com a familia.
Só pude compartilhar 26 anos de minha vida ao lado dele, quem me dera ter ido antes, a dor de vê-lo partir, foi avassaladora...
Nossas vidas jamais serao como antes, pois a saudade ao inves de amenizar com o tempo, só vem crescendo e crescendo...
um grande beijo
Erika Ladeia