Pular para o conteúdo principal

BARRA DO UNA


Não nasci em Barra do Una, sobretudo não morei em Barra do Uma. Ela é apenas um retrato na parede, mas como dói. Os versos do velho Drummond são como uma famosa esponja de aço, pois nos socorrem em todos os momentos, sejam felizes ou não. Já vai bem longe o tempo dos acampamentos nas deliciosas praias na foz do Rio Una, litoral norte de São Paulo. Era para lá que a nossa velha turma dos tempos de estudante ia passar os feriados prolongados. A viagem era programada com antecedência de pelo menos uns quinze dias e saiamos direto da escola em direção à praia. Eram noites intermináveis, pois chegávamos ao Guarujá por volta de 1h da madrugada e ficávamos esperando a balsa até o dia raiar. Depois pegávamos um caminho pelas praias de São Lourenço, estradinhas de terra com pinguelas sobre os rios. Hoje, com certeza, não teríamos coragem de atravessar de tão toscas e inseguras que eram. Mas tudo valia a pena naquela época e como as almas não eram pequenas, ninguém reclamava de nada e só de pensar nos mergulhos nas águas cristalinas e a roda de MPB quando começava a escurecer, dava um ânimo danado na gente.
Barra do Uma, ainda no início dos anos 70, era apenas uma pequena vila de pescadores que foi aos poucos sendo apropriada pelos especuladores imobiliários que foram expulsando os caiçaras, comprando seus terrenos a preço de “banana”. Naquela época, apesar dos casarões escondidos atrás das humildes residências dos nativos, ainda dava a impressão de casas entre bananeiras, pomar, amor e cantar. Era tudo devagar e devagar também as janelas olhavam.
Ao chegar armávamos nossas barracas na praia ou no quintal de um caiçara que trocava a hospitalidade por farinha e açúcar, coisas essenciais para eles. Depois era só alegria e muita música até o último dia de feriado, quando a tristeza baixava só de pensar em retornar para a neurose da cidade grande e pegar no batente.
Lá aconteciam coisas inusitadas, como uma dupla de cantadores de fandango, gênero musical presente entre os nativos do litoral desde o Paraná. A música é muito parecida com as catiras ou cateretês do interior de São Paulo, mas com alguns ingredientes característicos. Foi o Tau Scucuglia quem encontrou a dupla e a levou para o acampamento. Como a maioria do grupo era de Ciências Humanas, foi uma boa oportunidade para conhecer a cultura popular da região. Outra figura que conhecemos por lá foi um velho boêmio que depois de uma desilusão amorosa, largou casa, mulher e filho e foi viver na Barra do Una. Contava ele que chegou por lá sem eira nem beira. Dormiu três dias na praia e só depois foi procurar abrigo. Como era técnico em eletrônica, passou a fazer consertos de rádios, televisores, geladeiras, enfim, o que aparecia. Tudo em troca de peixe ou “depois eu pago”. Pobre Heitor Tolezano, um homem triste e amargurado. Sempre que bebia (quase todos os dias), falava sobre o filho que adorava e desandava a chorar copiosamente. Numa outra ocasião, apareceu uma índia com duas filhas adolescentes que fugiam dos caiçaras, que tentavam estuprar as meninas, fato corriqueiro com os pobres índios. Elas foram abrigadas no acampamento e tratamos de expulsar os caiçaras embriagados. Elas passaram a noite no acampamento e até traduziram uma música que o Pepito estava cantando: A djiu pi uirá poture/Aguadi haa care/ cunhaim djiu pii/ aramiu aahaata. Pela manhã, em segurança pegaram o caminho da aldeia que ficava há alguns quilômetros dali. Os índios, de uma tribo Tupi, levavam seus artesanatos para a vila e eram escandalosamente explorados pelos comerciantes caiçaras. Eles trocavam belas peças (arcos, flechas, tapetes etc.) por uma garrafa de cachaça ou um quilo de farinha de mandioca. Essas peças eram depois revendidas aos turistas por preços bastante elevados.
Os ricos proprietários dos imóveis da vila, que ainda mantêm um ancoradouro no Rio Una para seus barcos e iates não gostavam da nossa presença, pois temiam que nós atraíssemos novos campistas para o local, acabando com a tranquilidade da Barra do Una, um pequeno paraíso no litoral norte. Hoje, do que foi outrora, pouco restou. O rio está poluído com esgoto doméstico e o local está praticamente todo ocupado para casas de veraneio que aumentam a poluição e o lixo. O receio da burguesia de fato se concretizou. Acabou a Barra do Uma, uma paradisíaca praia do litoral norte de São Paulo.

Renato Ladeia

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...

A ROCA DE FIAR

Sempre que visitava antiquários, gostava de ficar observando as antigas rocas de fiar e imaginando que uma delas poderia ter sido de uma das minhas bisavós e até fiquei tentado a comprar uma para deixá-la como relíquia lá em casa. Por sorte, uma amiga de longa data, a Luci, ligou um dia desses avisando que tinha um presente para nós, que ficaria muito bem em nossa casa. Para minha surpresa, era uma roca de fiar, muito antiga, que ela ganhou de presente. Seu patrão se desfez de uma fazenda e ofereceu a ela, entre outros objetos, uma roca, que ela gentilmente nos presenteou. Hoje uma centenária roca de fiar está presente em nossa casa e, além de servir como objeto de decoração, é a alegria do Tom, meu neto, que fica encantado ao girar a roda da roca. Para ele é um divertimento quando vem nos visitar e passa algumas horas em nossa companhia. Ele grita e ri de modo a ouvir-se de longe, como se a roca fosse a máquina do mundo. Recordo-me, quando criança, que minha mãe contava história...

BARRA DE SÃO JOÃO

Casa  onde Pancetti morou Em Barra de São João acontece de tudo e não acontece nada. As praias são de tombo e as ondas quebram violentamente na praia. Quase ninguém as freqüenta a não ser algum turista desavisado, preferencialmente os paulistas. Mas o lugarejo é tranqüilo, com ruazinhas arborizadas com velhas jaqueiras e com muitas primaveras nos jardins, dando uma sensação gostosa de paz e tranqüilidade há muito perdidas nas grandes metrópoles. Foi lá que nasceu o poeta Casimiro de Abreu e onde foi sepultado conforme seu último desejo. O seu túmulo está no cemitério da igreja, mas dizem que o corpo não está lá e que foi “roubado” na calada de uma das antigas noites do século dezenove. A casa do poeta, restaurada, fica às margens do Rio São João é hoje um museu onde um crânio humano está exposto e alguns afirmam que é do poeta dos “Meus Oito Anos”. Olhei severamente para o crânio e questionei como Shakespeare em Hamlet: “To be or not to be”, mas fiquei sem resposta. O cas...