Pular para o conteúdo principal

MEU PRIMEIRO NERUDA

Comprei meu primeiro Neruda em meados dos anos 80, não me lembro ao certo e foi um acontecimento. Li os primeiros poemas ainda em pé na livraria e prometi, na hora de fazer o pagamento, que devoraria o livro e que satisfaria a minha ansiedade da poesia do grande poeta chileno. Qual o que! Li algumas páginas e o Canto Geral, era esse o nome do livro, ficou acumulando a poeira do tempo na estante.
De tempos em tempos olhava para a brochura e continua prometendo que o leria em breve e nada de cumprir a promessa. A vida moderna, com muito trabalho, o nascimento da única filha, o stress e tudo o mais e fui deixando, para o futuro, a leitura. Às vezes lia algum dos poemas para minha filha antes de dormir, mas, sinceramente, ela preferia o Drummond. O verso “O vento brinca nos bigodes do construtor” era o seu preferido e ela ria de modo a ouvir-se de longe.
Tempos depois um amigo, suspeitando que eu fosse um apaixonado pela poesia de Neruda me presenteou com os Versos do Capitão, com uma bela dedicatória. O pequeno livro foi devorado e os versos de amor ainda rondam minhas noites de insônia. “Quitame el pan, si quieres/quítame ela ire, pero/no me quites tu risa”.
Outro dia, decidido a ler poesia e quem sabe participar de um sarau literário, resolvi buscar o Canto Geral do saudoso Neruda na mesma estante onde permaneceu por anos a fio. Qual o que!
- Onde está o meu Neruda? Perguntei impaciente.
Ninguém tinha notícias e minha filha, irônica, ainda perguntou:
- Aquele que você ainda não leu?
Essa frase me fez lembrar de um velho samba do Chico, quando ele diz: “Devolva meu Neruda, que você levou e que não leu”. E é bem provável que eu tenha emprestado, mas não sei para quem. Passei em revista na memória todos os amigos possíveis leitores de poesia e não encontrei nenhuma pista que me levasse ao livro. Que meus amigos me perdoem pela indiscrição, mas cheguei a bisbilhotar suas estantes e nada encontrei. Provavelmente, esse alguém chegou em casa, colocou o livro na estante e nunca mais tocou nele. Uma frase que ouvi do Milton Eto, um amigo professor de literatura portuguesa, bateu forte em minha memória: “Nos empréstimos de livros há sempre dois ingênuos, o que empresta e o que devolve”. Eu era, sem dúvida alguma, o ingênuo.
Enfim, o meu “pobre” Neruda deveria estar em alguma estante esperando pelo seu leitor, que levou e não leu, conclui com tristeza.
Mas o mundo é pequeno e os encontros e desencontros se sucedem quando menos esperamos. Não é que num dia destes, visitando um sebo a procura de alguma preciosidade abandonada, encontrei o livro com a minha assinatura e tudo! Pois então resolvi recomprá-lo imediatamente, mas estava sem dinheiro e sem o talão de cheques. Pedi, encarecidamente, ao proprietário do sebo que o reservasse para mim. Ele prometeu que guardaria até o final do expediente, mas depois disso se alguém quisesse comprá-lo ele não perderia a oportunidade da venda. Dito e feito! Compromissos fizeram com que deixasse para o dia seguinte a visita ao sebo e quando lá cheguei, alguém mais esperto, tinha comprado o Canto Geral. Também pudera! Estava uma pechincha. Desconsolado, xinguei todas as gerações da pessoa a quem eu havia emprestado o livro, que além de não ter lido, o vendeu a um sebo, por uma merreca. Depois pensando melhor, talvez ele tenha emprestado a um outro qualquer que, sem escrúpulos, o deixou num sebo. Com certeza meus amigos não fariam comigo, tal desfeita.
Por estranha coincidência encontrei depois, no mesmo sebo, outro livro do Neruda, o “Tercer Libro de Las Odas” com uma dedicatória: “Maria de Lourdes, São Paulo, Brazil. Recuerdo: 9 de Enero 1979”. Será que Maria de Lourdes leu o poema Ode a la casa dormida e os primeiros versos “Hacia adentro, em Brasil, por altas sierras y desbocados rios, de noche, a plena luna... Las cigarras llenaban tierra y cielo com su telegrafia crepitante.” Não sei se depois de 29 anos, Maria ainda vive e o livro somente foi parar no sebo depois de sua morte. Ou então, o marido enciumado encontrou o livro em meio aos guardados da mulher e descobriu o Neruda que, possivelmente, estava associado a um antigo amor chileno. Especulações, meras especulações...

Renato Ladeia

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...

A ROCA DE FIAR

Sempre que visitava antiquários, gostava de ficar observando as antigas rocas de fiar e imaginando que uma delas poderia ter sido de uma das minhas bisavós e até fiquei tentado a comprar uma para deixá-la como relíquia lá em casa. Por sorte, uma amiga de longa data, a Luci, ligou um dia desses avisando que tinha um presente para nós, que ficaria muito bem em nossa casa. Para minha surpresa, era uma roca de fiar, muito antiga, que ela ganhou de presente. Seu patrão se desfez de uma fazenda e ofereceu a ela, entre outros objetos, uma roca, que ela gentilmente nos presenteou. Hoje uma centenária roca de fiar está presente em nossa casa e, além de servir como objeto de decoração, é a alegria do Tom, meu neto, que fica encantado ao girar a roda da roca. Para ele é um divertimento quando vem nos visitar e passa algumas horas em nossa companhia. Ele grita e ri de modo a ouvir-se de longe, como se a roca fosse a máquina do mundo. Recordo-me, quando criança, que minha mãe contava história...

BARRA DE SÃO JOÃO

Casa  onde Pancetti morou Em Barra de São João acontece de tudo e não acontece nada. As praias são de tombo e as ondas quebram violentamente na praia. Quase ninguém as freqüenta a não ser algum turista desavisado, preferencialmente os paulistas. Mas o lugarejo é tranqüilo, com ruazinhas arborizadas com velhas jaqueiras e com muitas primaveras nos jardins, dando uma sensação gostosa de paz e tranqüilidade há muito perdidas nas grandes metrópoles. Foi lá que nasceu o poeta Casimiro de Abreu e onde foi sepultado conforme seu último desejo. O seu túmulo está no cemitério da igreja, mas dizem que o corpo não está lá e que foi “roubado” na calada de uma das antigas noites do século dezenove. A casa do poeta, restaurada, fica às margens do Rio São João é hoje um museu onde um crânio humano está exposto e alguns afirmam que é do poeta dos “Meus Oito Anos”. Olhei severamente para o crânio e questionei como Shakespeare em Hamlet: “To be or not to be”, mas fiquei sem resposta. O cas...