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"MINHA ALDEIA" de Valnice Vieira Bolla

Recebi o livro Minha Aldeia da minha querida amiga Valnice ou simplesmente Bolla, atriz, cenógrafa, figurinista, bonequeira e escritora. Sentado na rede, comecei a ler a brochura e fui recordando quando eu a conheci. Quanto tempo! quantas histórias! quanta generosidade! desse casal ( ela e o Zé Geraldo) que dedicou e dedica a vida às artes, sem concessões, por descuido ou poesia. Enfim, Bolla saiu do armário e colocou para fora seu lado de poeta e escritora. Quantas coisas bonitas ficaram nos seus alfarrábios escondidos nas gavetas do tempo! Mas enfim, temos em mãos as suas lembranças poéticas e suas reflexões expressas de forma muito particular, repletas de simbologias, da visão de mundo de uma criança que ela continua teimando em ser e, quiçá, nunca mude. Bolla me lembra um pouco a sua conterrânea Cora Coralina, pois nasceu em Goianésia no mesmo estado da poeta. De lá trouxe nas malas, na mente e nos bolsos, velhas lembranças como da casa de chão batido onde morou, do avô com seu terrível chicote, da mãe rígida e amorosa, do quintal, dos bichos e dos passarinhos. Minha Aldeia, é o poema título do livro. E essa aldeia está sempre presente, como a aldeia de Fernando Pessoa junto ao Tejo, a Itabira de Drummond ou a Póvoa de Varzim de Eça de Queiroz. Por onde quer que caminhe, ela está sempre presente em seus olhos. São “Olhos esses que sempre viajam comigo”. A “nossa aldeia” é a nossa casa primitiva, mesmo que não tenha teto, não tenha nada... como diria Vinicius. A aldeia de Bolla é a casa uterina, que conserva em seu olhar mesmo distante do torrão natal. É para onde ela sempre retorna nas noites de insônia e resgata os saberes apreendidos num poço sem fundo. Suas memórias são inesgotáveis, como no velho poço de onde sempre vinham novidades no balde junto com a água (O poço). Em “Lembro”, ela retorna à casa velha, resgata o cuspe da menina no chão, formando figuras e sonhos e onde “brinquei de ser feliz”. Ser feliz era brincadeira de criança, era bom demais para ser verdade. Era a casa primordial onde os olhos da menina enxergavam longe, mas sempre diante dos olhos da mãe. Em “De qual raça”, sua memória a leva para os comentários da família, dos vizinhos, onde um racismo quase sutil, viam no seu corpo, um pouco “meio negra na bunda, meio índia na demora, meio galega no nervoso, gesticuladora como portuguesa”. Essas frases ela trouxe consigo e a marcaram. É difícil fugir delas, pois estão sempre presentes nos olhares, nas falas e nos gestos. E ela também as incorpora quando interpreta seus personagens. No poema “Duelo”, sua mente criativa transformava as tarefas delegadas às crianças, em grandes lutas do bem contra o mal. “A colher de pau virava a espada que penetrava/ o coração daquele monstro drago, /que fazia a pequena escrava/ atiçar o fogo que crescia dentro de si”. É a menina transformando o fazer em brinquedo tentando tornar o trabalho infantil algo lúdico e menos pesado. “A barca”, é uma viagem com as crianças da fábula de Hamelin, mas ela era a menina que encantava as crianças com suas histórias cheias de mistérios e encantamentos. Em “Cacos”, ela reconstrói as suas lembranças juntando cada pedaço, colando, costurando de forma interminável. Na cidade grande ela tenta reconstruir o que ficou lá, perdido em Goianésia, sua terra natal. Um verso do mineiro Drummond, “Minas ainda há” ou não há mais, a remete à Minas das montanhas, da comida, das canções... A lembrança da fome, resgata a origem mineira que transcende para além do horizonte. A fome é das lembranças do avô, com o “melado com mandioca amassada, com farinha de milho e leite”. A poeta insinua voltar para Minas, mas como diz Drummond “Minas já não há”. “Por um triz” “Viajo dentro das memórias que não abandonam o corpo...” As memórias da poeta estão no seu DNA, na sua essência e são seus antepassados que atravessam seus sonhos, seu passado e seu presente. Em “Saída”, é um velho que lembra os versos do jovem Chico “Então eu lhe pergunto pelo amor? Ele me é franco, mostra um verso manco de um caderno em branco que já se fechou...”. Mas ela vai além, “Não sei o que será de mim sem a sua vida...”, ela é mais do que saudosismo, e reclama: “Me cura de novo, preciso de uma nova vez”. Ela chega “Na cama que escolhi” à sua Pasárgada, terra prometida, onde não era amiga de nenhum rei e pelo contrário, tudo era muito difícil, árido e o medo que impregnava suas entranhas. Era o medo dos ditadores, o medo da polícia que estava no ar, nos textos das peças que representava. As vezes faltava comida e a arte supria a fome. Cada dia era uma caça constante pela sobrevivência. Quando a menina que via imagens no barro formado com o cuspe se transforma em atriz, ela não mora mais em seu corpo. Vestiu personagens e foi descobrindo o seu espelho ou a imagem que faz de si ou o que o palco a expressa. “Na crônica de mim mesma”, reconhece as suas cicatrizes e a vida ainda dói muito... E o livrinho escorre denso, ao mesmo tempo leve e segue pelas minhas mãos navegando nas águas do rio que sempre passa em mim. Me faz lembrar um pouco de Drummond, de Brecht, de Pessoa, de Manoel de Barros, o poeta das insignificâncias, do olhar das crianças. Mas somos todos feitos desse mesmo barro ancestral, dessa poesia que impregna os nossos sentidos, nosso modo de ser, nossas esperanças.

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