Pular para o conteúdo principal

ÁGUA INDÓCIL DE ANA CLARA DE VITTO

Publicado em 26 de June de 2019 por Renato Ladeia
A poesia de Anna Clara De Vitto parece estar submersa, mas vem à tona em cada verso, arrebentando-se nas praias do inesperado e também do cotidiano. É uma viagem, por vezes, em pequenos poemas ou em outros mais longos. A praia e o Atlântico estão sempre presentes. Santos é o seu ponto de partida, a cidade onde nasceu e regressa numa relação quase uterina, profunda e repleta de incógnitas.
Hoje na metrópole, a poeta resgata os sonhos e pesadelos com o mar em sua infinita grandeza e com todos os seus medos e dúvidas.  Mas o mar está presente em improváveis castelos de areia e em insistentes murmúrios e ais. No mar de concreto ela constrói, como o ladrilhador de Walter Benjamin, novos significados para as palavras, para a dor e para o tempo.
Poesia não é sentimento, não é lembrança, não é acontecimento, já foi dito por Rainer Maria Rilke em Cartas para um jovem poeta.  Poesia é ficção, o poema não é confessionário ou divã de analista, como escreveu no prefácio o poeta José Carlos Brandão. Sim, poesia é criação, é a alma do avesso do avesso, como diria Caetano Veloso.

“a menina perdida
Parece crescida
teima castelos...”
O poema “primeiras palavras” começa com as ondas batendo na praia, saltando rochedos. É o olhar de menina que ainda não sabe qual caminho seguir, mesmo tendo crescido, continua insistindo em prováveis castelos de areia.
Mas no dia seguinte parece ter certeza da vida, simbolizada pelo surgimento do sol no oceano. O sol que pode ser a chave que pode abrir novos horizontes, novas paisagens. Mas vem a dúvida sobre o amanhã (amanhã ninguém sabe...). Haverá uma chave ou tudo é fluído e a chave já não tem utilidade? Talvez esteja buscando outras chaves possíveis num universo de possibilidades.
Em “um leste possível”, a poeta constrói alternativas “na madrugada de lentes gastas”. O amanhecer enxerga o horizonte ou é a neblina de tempos perigosos que embaça o olhar da menina que nasceu observando o mar?
Ao acordar na metrópole, sem mar, sem ressaca, não é mais o encontro com a cidade que a viu nascer, mas a separação da união com o sonho. Essa imagem pode também ser percebida em “oração no telhado”, onde tudo pode estar sendo demolido com a violência desconstrutiva das picaretas, sugerindo a desconstrução de um tempo.
Em “tormenta”, um belo poema contido em poucas palavras, é a expressão de alguém que se sente perdida diante do mar ou do novo mundo. O mar da cidade natal é substituído pelo  concreto, que revela medos, dores, insegurança diante dos novos tempos.
Em “fronteira”, o poema é um estrangeiro, no sentido de ser de fora, de não pertencer. Sugere ser um intruso na alma do poeta, como alguém que chega sem avisar, criando desassossegos. O poema “chega como quem chega do nada...” lembrando os versos de Chico Buarque. A linguagem do estrangeiro não é entendida, mas o verso sim, pois tem o poder da poesia e emerge como mágica, mesmo sendo em outro “idioma”. É o subconsciente que precisa ser traduzido, que pede passagem, que pede voz. Em outro poema, “a balsa do poema apátrida, choca-se contra as pedras...”. Ainda como um estrangeiro, o poema não nasce no aconchego da mãe pátria. Não tem mãe, não tem mátria. Sem ter “berço esplêndido”, fenece na praia.
Em “manual de guerrilha para mercúrio em câncer”, é a poeta militante nas ruas, nas estações de trem que não tem medo e nem pudor de amar. E o “desenrolar-se dos pesadelos bordados no lençol...”. O corpo adormecido deixa marca dos sonhos no tecido e o acordar é a possibilidade de romper com o estado de coisas, com o medo da violência urbana.
Num poema sobre os bonsais, “quercus acutíssima”, vemos a metáfora da prisão simbólica. Seria o ser humano um “bonsai” domesticado, amarrado, torturado em um espaço limitado, com a liberdade ausente? Nasceríamos para sermos mostrados no living como uma bela criatura moldada (educada) para ser a imagem dos criadores (ou do criador?). Realmente um poema inquietante, que coloca o ser humano em discussão, retomando o dilema hamletiano: “Ser ou não ser...”.
Em “ponta da praia”, um poema síntese, com o olhar da menina observando a violência poética da natureza que explode com um grito quase parado no ar. A poesia continua, mas inaudível ou reprimida? Talvez a poesia contida no grito, vai explodir no interior da alma.
A água indócil é mais do que um livro de poesia, é a água que arrebenta nas pedras e nas veias. A água é sangue, é fluida, assume formas, desejos, medos, calafrios e esperanças e é o objeto na construção dos seus versos. As palavras que brotam, ganham vida, saltam, alegres, tristes ou silenciosas, construindo versos, versos soltos, intrigantes, reflexivos ou provocadores.
Anna Clara, a doce menina que conheci ainda criança que queria ser diplomata depois de cursar Direito nas Arcadas da São Francisco. Cumpriu parte da promessa e tornou-se também mais uma poeta das Arcadas, emergindo adulta, retirando poesia da água, da ressaca, do movimento das águas e das pedras. A diplomacia ficou distante para a poeta e advogada que resolveu beber outras águas do viver. Oxalá ela continue produzindo versos como quem luta, chora e ”rir de modo a ouvir-se de longe”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o tempo

A ROCA DE FIAR

Sempre que visitava antiquários, gostava de ficar observando as antigas rocas de fiar e imaginando que uma delas poderia ter sido de uma das minhas bisavós e até fiquei tentado a comprar uma para deixá-la como relíquia lá em casa. Por sorte, uma amiga de longa data, a Luci, ligou um dia desses avisando que tinha um presente para nós, que ficaria muito bem em nossa casa. Para minha surpresa, era uma roca de fiar, muito antiga, que ela ganhou de presente. Seu patrão se desfez de uma fazenda e ofereceu a ela, entre outros objetos, uma roca, que ela gentilmente nos presenteou. Hoje uma centenária roca de fiar está presente em nossa casa e, além de servir como objeto de decoração, é a alegria do Tom, meu neto, que fica encantado ao girar a roda da roca. Para ele é um divertimento quando vem nos visitar e passa algumas horas em nossa companhia. Ele grita e ri de modo a ouvir-se de longe, como se a roca fosse a máquina do mundo. Recordo-me, quando criança, que minha mãe contava história

BARRA DE SÃO JOÃO

Casa  onde Pancetti morou Em Barra de São João acontece de tudo e não acontece nada. As praias são de tombo e as ondas quebram violentamente na praia. Quase ninguém as freqüenta a não ser algum turista desavisado, preferencialmente os paulistas. Mas o lugarejo é tranqüilo, com ruazinhas arborizadas com velhas jaqueiras e com muitas primaveras nos jardins, dando uma sensação gostosa de paz e tranqüilidade há muito perdidas nas grandes metrópoles. Foi lá que nasceu o poeta Casimiro de Abreu e onde foi sepultado conforme seu último desejo. O seu túmulo está no cemitério da igreja, mas dizem que o corpo não está lá e que foi “roubado” na calada de uma das antigas noites do século dezenove. A casa do poeta, restaurada, fica às margens do Rio São João é hoje um museu onde um crânio humano está exposto e alguns afirmam que é do poeta dos “Meus Oito Anos”. Olhei severamente para o crânio e questionei como Shakespeare em Hamlet: “To be or not to be”, mas fiquei sem resposta. O casario