O CORTIÇO EM SÃO CAETANO
Na minha rua havia um cortiço.
Não era nada parecido com o do romance do Aluízio Azevedo, mas tinha lá as suas
peculiaridades. O que chamamos de cortiço, regra geral, é uma casa dividida em
cômodos com várias famílias ocupando e compartilhando apenas um sanitário e o
quintal. É claro que daí surgem os conflitos. Crianças jogando bola nas roupas
penduradas no varal, brigas pela utilização do mesmo espaço, conflitos entre
crianças e vai por aí.
Quando eu era criança havia pelo
menos quatro famílias morando no local. Dona Encarnacion, com quatro ou cinco
filhos ocupando apenas um cômodo. Seu marido a abandonara e só aparecia uma vez
por mês para ver os filhos e levar a parca pensão. Coitada da Encarnacion era
uma vida difícil. Havia, também, uma
antiga moradora do endereço, uma espanhola chamada Maria que vivia amasiada com
um Cearense. Tinha uns quatro filhos do primeiro marido e mais uns três do
segundo e ocupava dois cômodos. Diariamente ela saia pela cidade para esmolar.
Voltava com um ou dois sacos repletos de roupas que nunca utilizava e as
colocava no lixo. Era conhecida como Maria Louca, pelas suas extravagâncias,
criando encrencas com toda a vizinhança por causa dos filhos. Ela tinha um
filho mais velho, chamado Juarez, briguento como ele só. Durante as peladas
sempre nos desentendíamos e era briga na certa. Eu sempre levava a melhor, mas
ele atirava pedras para se vingar e o jeito era correr antes de levar uma na
cabeça. O Juarez e os irmãos eram crianças de rua e meus pais não gostavam que
nos brincássemos com eles, mas ninguém levava isso muito a sério. Minha mãe
tinha pena das crianças e sempre que percebia que estavam famintos, oferecia um
prato de comida. Uma vez meus pais chegaram à noite e encontraram o Juarez
dormindo em nossa varanda. Estava um frio de rachar e minha mãe o acomodou em
casa com direito ao café da manhã.
Um senhor que lá morava era o
mais atípico. Vestia-se com elegância, sempre com camisas bem passadas e
gravatas bem ajustadas no colarinho. Saia
todas as noites e nos fins de semana circulava pelos bares do bairro. Sabia-se
que trabalhava na Volkswagen, mas nunca comentava o que fazia por lá. Todos se perguntavam para onde ia o seu
Donutti? Sua mulher, dona Clarice, era uma coitada. Além de trabalhar fora,
fazia a dupla jornada, cozinhando e lavando para a família. O casal tinha três
filhos, sendo o Vanderlei o mais velho que se juntava com a turma nas peladas
da rua. Para complicar, a família hospedava o irmão solteiro da dona Clarice,
que provavelmente dormia na cozinha, já que a casa tinha apenas um quarto e
cozinha. Ficava imaginando o desconforto do moço, que também se vestia com
elegância, sempre de paletó e gravata. Dizem que trabalhava em um banco e que
falava inglês fluentemente. Depois de algum tempo passou a dar aulas de inglês à
noite e saiu da casa da irmã, aparecendo por lá eventualmente para uma visita
rápida.
Morou lá também uma família de
negros. O José Luiz era muito alto e magro e se parecia com um Neuer (povo
africano da África Central que o antropólogo inglês Radcliff Brown estudou). É
claro que na época nunca havia ouvido falar no Radcliff. Ele era muito esperto e hábil em catar balões
e pipas quando caiam em nossa rua. Era uma família muito fechada e sabia-se
muito pouco sobre eles. Todos tínhamos medo do Zé, pois além do tamanho, era
muito rápido com os pés e mãos. Mas
ficaram pouco tempo na casa e logo se mudaram para outro bairro o que nos deu
alívio, pois nos livramos do habilidoso catador de balões e pipas.
O dono do cortiço era um judeu
que passava todos os meses para receber os aluguéis. Vinha em um velho
Chevrolet dos anos cinquenta, dirigido pelo filho. Parava o carro em frente a casa
e o filho chamava os inquilinos para o acerto de contas. Como era raro aparecer
um carro por lá, a molecada parava a pelada na rua para admirar o carrão que só
víamos nos filmes americanos nas matinês de domingo. Às vezes algum dos moradores não tinha
dinheiro e o velho judeu saia furioso do carro balançando a sua enorme pança e
gritando impropérios. O filho procurava acalmá-lo e depois de algumas
negociações, iam embora.
Tempos depois o judeu vendeu a
propriedade e os inquilinos precisaram se mudar. A primeira foi a dona Clarice
com o seu marido elegante. Em seguida mudou-se a Maria Louca, depois de se
separar do seu Júlio, um cearense que parecia um índio e arranjar outro marido
que tinha uma propriedade em outro bairro. Dona Encarnacion, com todos os seus
filhos mudou-se para a mesma rua, mas morreu de câncer logo depois. Ela tinha
uma filha chamada Julia, uma garota bonita, com pernas morenas e roliças que
deixava a mostra em seus vestidos curtos. Nos meus nove ou dez anos, já fazia
planos para levá-la à matinê, mas nunca deu certo, pois faltou coragem para
fazer o convite e eu achava que ela toparia, pois me devorava com seus olhinhos
de ressaca.
Com o fim do cortiço, acabou-se
também a minha infância, as peladas de rua e as brigas intermináveis sobre se
foi ou não foi gol, se foi bola na mão ou mão na bola ou quem era o melhor time
do campeonato: Corinthians ou Palmeiras ou o Santos? O mais chato mesmo foi a
falta que senti da Júlia, a menina das pernas roliças que provocava meus
hormônios e eu ainda não entendia muito bem por quê.
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