ANDRADINA
Andradina parece
um nome de mulher, mas é apenas uma cidade com nome feminino. A origem vem de Andrade, um rico fazendeiro que se apossou daquelas terras para criar
gado. Como quase toda a região Noroeste
Paulista, as cidades são planas, quase sem elevações. É um horizonte sem fim e
o sol nem tem como se esconder no final das longas tardes de verão. Andradina,
nome que eu ouvia desde menino quando as pessoas da família que moravam em
Lavínia a ela se referiam. Uma grande cidade, a morada do rei do gado, um
mitológico boiadeiro que virou uma canção da dupla Tonico e Tinoco que meu pai
gostava de ouvir pelo rádio no final do dia. “Quem quiser saber meu nome/ que
não se faça de arrogado/é só chegar lá em Andradina/ e perguntar pelo rei do gado”.
Imaginava que para entrar em Andradina era preciso pedir licença para o rei que
ficava sentado em um trono com chapéu, bombacha e botas gauchas, como se vestia
meu tio José que também foi boiadeiro. Andradina era também a terra do Auro
Moura Andrade, filho do fundador da cidade e senador por São Paulo que ajudou
os militares a darem o golpe de misericórdia no presidente João Goulart ao
declarar vaga a presidência da república.
Fui uma única vez a terra do rei
do gado e foi para visitar uns parentes que talvez ainda morem por lá. Isso já
faz quase trinta anos. Tinha ido à Lavínia visitar uns parentes e estava com
meus pais, minha prima Vicenza, que morava em Lavínia, minha mulher e a
Mariane, quase um bebê. Meus pais e a Vicenza já partiram e deles ficaram boas
lembranças. Minha mulher mal se lembra
da viagem e a Mariane era muito criança para se recordar. Chegamos no meio da
tarde e a idéia era voltar no mesmo dia para Lavínia, uns 70 km de distância,
mas acabamos ficando por lá e só retornamos no dia seguinte.
Naquela noite, depois do jantar,
duas das primas Zamboni convidaram a mim e a Célia para dar uma volta na cidade,
tomar um chope e jogar conversa fora. Num bar, um amigo das primas sentou-se
com a gente e lá ficamos até altas horas. Já alegre, depois de alguns chopes,
declamei Fernando Pessoa com sotaque lusitano para criar mais clima e o amigo
das primas declamou, aliás, muito bem, um poema do Augusto dos Anjos. Quem era
aquele rapaz que nem me lembro o nome? Uma pessoa simpática e sensível que
ainda fez questão de pagar a conta. Quanta gentileza! Como foi saudosa aquela
noite andradinense! Na volta a bateria do carro, um bonito Passat que só me deu
problemas, pifou e retornamos a pé cantando pelas ruas por onde, cinqüenta anos
atrás era um acampamento que deu origem a cidade. A lua de Andradina parecia
bem maior na minha memória. Ela crescia e se afastava na medida em que caminhávamos.
O céu era muito limpo e dava para ver o azul escuro que guardava as estrelas. Para
que tanta estrela meu Deus? São os olhos do universo expiando a gente, como
dizia minha mãe. Meus olhos foram pensando enquanto caminhávamos.
No dia seguinte, depois de uma
visita a fazenda, voltamos para onde estávamos hospedados, a Fazenda São
Vicente, em Lavínia, onde morava a Vicenza. A Vicenza estava sempre doente, mas
ela era alegre e gentil. Tratava-nos como reis. Pão feito em casa, doces e mais
doces, galinha de Angola e outros quitutes. Quando ela morreu não pude ir ao enterro
e só mandei uma coroa de flores que a dona da floricultura me garantiu que era muito
bonita. Bem que ela merecia e muito mais. Eu era o seu afilhado mais velho e
por isso tínhamos uma ligação muito forte. Fiquei uns três meses com ela na
fazenda quando tinha apenas uns quatro anos. Nunca consegui esquecer essa época.
Aqueles poucos meses parece-me, hoje, que duraram anos. A invernada, os bois, uma vaca brava, o riacho
cheio de taboas, o pau d’alho perto da porteira, o cavalo branco chamado
mussulini. Quantas lembranças.
Voltamos para casa e por alguns
anos enviamos cartões de Natal para os Zamboni em Andradina. Com o tempo fomos
nos esquecendo de enviá-los e eles também. Minhas primas (eram quatro) não sei o
que fizeram da vida. Só me lembro de que uma delas assumia o papel de um
filho que o casal não teve e ajudava o pai a cuidar da fazenda.
A Andradina do rei do Gado, do
senador que ajudou o golpe militar, ficou para trás na poeira da estrada. As
belas e simpáticas primas devem estar casadas com filhos e talvez até netos,
como nós e talvez nem se lembrem da nossa visita. A região Noroeste foi ficando
para trás. Araçatuba, onde minha mãe morava com meus avós; Valparaiso onde meus
pais se casaram e meu avô foi sepultado numa vala comum, pois com Alzheimer se perdeu e morreu sem saber quem era e onde estava. Cafelândia, onde meu pai trabalhou durante algum tempo. Olho
no mapa e vejo coisas distantes, que parecem estar sumindo nos labirintos
de minha memória.
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