A TERRA DO NUNCA E A PARTIDA DA DONA ÁUREA FERRARI DA SILVA
Dona Áurea, mãe do amigo Edson Zeca
da Silva, como a minha e a da Dalva, também partiu para a Terra do Nunca. Há tempos ela se refugiu depois
de um AVC. Não que estivesse impossibilitada, mas optou ficar como se o estivesse.
Não recebia visitas e não saia de casa, recolhendo-se quando o sol se punha. Vivia
como um compromisso, sem prazeres e sem alegrias. Seus contatos humanos
praticamente se restringiam ao filho e a enfermeira. Como diria o poeta Drummond: “Chegou um tempo
em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação” no poema Meus
ombros suportam o mundo.
Dona Áurea Ferrari da Silva era
simpática, mesmo sendo uma mulher de poucos sorrisos, sempre séria, ensimesmada
- pelo menos essa é a imagem que guardei dela - mas gostava de cantar, principalmente
as músicas do Chico Alves, Herivelto Martins, Lupicínio entre outros. Nas festas familiares seu filho dava o tom no
violão e a arrastava para o sarau. No início, ficava um pouco sem jeito, mas
depois se soltava e se embalava nas boas canções da velha guarda. Era uma
pessoa atenciosa com os amigos dos filhos, sempre os recebendo bem. Não se
incomodava com as visitas de última hora e colocava com prazer mais um ou dois
pratos a mesa ou improvisava para que ninguém saísse com fome de sua casa. Ademir
Bellucci, hoje um senhor quase sério, caso não fosse tão galhofeiro, lembra ainda
com saudades dos refogados bem temperados da mãe do Zeca.
Mas eis que um novo acidente, não de
carro, mas vascular cerebral, a levou, silenciosamente, numa madrugada fria e
cinzenta. Ela não chegou a ver a luz do dia, nem os sanhaços e sabiás que invadiram o seu quintal para mais um banquete diário de carambolas.
E foi pensando na partida das mães que
me lembrei de um poema do Drummond insinuando
que devia ser proibido que as mães morressem, que peço licença para reproduzir
um trecho:
“Mãe não
morre nunca
mãe
ficará sempre
junto
de seu filho
e
ele, velho embora
será
pequenino
feito
grão de milho”
Mas o Drummond, como todos os poetas,
são fingidores, chegando até a fingir que existe dor na dor que sentem
verdadeiramente. Enfim, é preciso entender que há sempre um momento de chegar e
outro de partir. As partidas são sempre tristes, principalmente as partidas
definitivas, em que não há mais perspectiva de retorno. As partidas do sono
eterno machucam, como se tirassem um pedaço da gente, mas são necessárias para
que o ciclo da vida continue. Se as mães vivessem para sempre ou mesmo por
muito, muito tempo, sofreriam muito, pois testemunhariam a partida dos filhos,
dos netos, bisnetos, como a viúva Úrsula Buendia dos Cem Anos de Solidão do Garcia
Marquez. E aí sofreriam bem mais e para que fazer as mães sofrerem mais?
As religiões são confortantes, pois quase
todas pregam que o corpo perece e a alma permanece, subindo aos céus para viver
na eternidade, caso não se tenha grandes pecados a expiar. Onde é o céu? Continua
a perguntar o menino que ainda existe em mim. As viagens espaciais, as
fotografias do universo visível mostram que a terra é um minúsculo planeta a
girar em torno de uma estrela de quinta grandeza, entre trilhões e trilhões de
outras estrelas e outros planetas, cometas, satélites e asteróides. Somos menos
do que bactérias na imensidão do universo. Quem dará importância a seres tão miúdos?
Mas para tudo isso os teólogos tem
respostas que a ciência talvez nunca tenha.
Mas voltando à Terra do Nunca, voando um
pouco mais a frente, depois da primeira estrela a direita, onde fica a terra do
nunca, dá para avistar a terra das mães. Pena que nenhum escritor de contos de fada teve
tempo ou inspiração para escrever sobre ela. Lá as mães, como no poema do
Drummond, vivem para sempre, embalando o sono dos seus filhos eternos. Lá não
existe filho mal educado, nem palmadas, apenas longas tardes da eternidade onde
as mães contam histórias da carochinha, entre bolinhos de chuva e café com
leite.
Renato Ladeia
REnato....que cronica maravilhosa....fiquei emocionada...lembrando aqui no meu cantinho de Dona Aurea...de minha mãe....que tambem ja esta na terra do nunca...ou na Terra das Mães....Zeca...tenho certeza ira gostar muito dessa cronica....beijos....
ResponderExcluirHá um tempo de chegar e outro de partir...
ResponderExcluirGosto das "filosofias" espiritualistas. Elas nos dão a expectativa (para alguns dão a certeza) de que sempre estamos juntos aos que bem queremos e que partiram para a terra do nunca. Os mestres dessa arte dos "eternamente juntos" são os budistas que todos os dias reverenciam seus mestres e seus mortos. Mortos? Não! Sempre juntos ad infinitum.
Abraços fraternos a você, Renato, e aos amigos que por coincidência ou não se despediram por um tempo de suas mães nestes tempos de renovação.
Talvez você tenha deixado as pessoas tristes ao dizer Terra do Nunca. Eu sei que você está fazendo uma analogia com a terra do nunca do Peter Pan, onde as crianças não crescem nunca, pois não querem perder as alegrias e encantos da infância. A sua terra do nunca é o lugar em que elas são mães para sempre.
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