Ao sair do cinema na Rua Augusta, depois de assistir o belo filme de Woody Allen, fiquei um pouco frustrado por não estar chovendo como na última cena do filme. A rua estava repleta de carros, com muito barulho, muita gente e em nada sugeria o clima de Paris nos anos 30, palco da trama desenvolvida pelo magistral cineasta. Mas resolvi caminhar um pouco para curtir o clima do filme enquanto aguardava uma carona. Cansado de esperar fui descendo a Augusta no sentido centro e aos poucos fui tomado por um clima diferente. Até hoje não sei se pirei ou se o mundo havia voltado no tempo. Estava em frente ao restaurante Gigetto, onde até hoje, muita gente famosa gosta de jantar depois das peças de teatro, shows ou mesmo para encerrar uma noite de trabalho. Lá encontrei há alguns anos atrás o humorista Ary Toledo, Chico Buarque, Marieta Severo e Elba Ramalho todos numa mesma noite.
Logo que entrei vi sentado em uma mesa num canto o poeta e romancista Mario de Andrade, com sua calva avançada. Ele estava rascunhando alguma coisa, talvez um verso. Imagino que não era no guardanapo porque nos anos 30 ainda se usava de guardanapos de pano. Não importa se era numa folha de papel qualquer, mas ele estava escrevendo. Aproximei-me e ele muito solícito pediu que eu sentasse e começamos a conversar sobre sua obra, principalmente o seu famoso poema Paulicéia Desvairada. Fiquei bisbilhotando o que ele havia escrito no papel e ao notar meu interesse deu para que eu lesse. Era um poema numa linguagem típica dos caipiras paulistas: “Quando da brisa, num açoite/ A flor da noite/ Se acurvô/ Foi se encontrá com a Maroca/meu amor...” E foi então que ele disse que se tratava de uma letra que estava fazendo para uma canção de um amigo, o Ary Kerner. Mário, depois de beber mais um pouco de cerveja, soltou-se e declamou os versos para mim, ante o olhar espantado de alguns freqüentadores circunspectos do restaurante.
Enquanto conversávamos animadamente eis quem chega ao Gigetto: nada mais nada menos do que o futuro historiador paulista, Sérgio Buarque de Hollanda. Ele ainda era um sujeito magro, muito elegante com seu costume justo no corpo e um chapéu de palheta que levava à cabeça. Saudou-nos alegremente e disse ter gostado muito dos versos que o Mário havia lhe enviado na última semana para o Rio de Janeiro. Mário cuidou de apresentar-me ao seu amigo, mas ainda nem sabia meu nome: “Este é o senhor... “ Eu completei rapidamente dizendo meu nome e disse que estava tentando escrever uns versos e buscava na experiência do Mário de Andrade, algumas orientações e críticas. Nisso o Sergio, muito solícito, ofereceu-se, ele mesmo, para ler os meus versos e analisá-los.
- E o que faz na Paulicéia, Sérgio? Que bons ventos o trazem? Perguntou animadamente o Mário.
- Vim resolver alguns negócios de família, mas devo retornar ao Rio, no final da semana. Contudo, antes quero encontrar com os amigos, ver uma ou outra peça de teatro, comprar alguns livros...
- Você continua um inveterado comprador de livros. Eu também não posso falar muito, pois a minha biblioteca está entupida e não tenho mais lugar para guardá-los.
- Não se preocupem, disse eu, um dia vocês deixarão para uma biblioteca pública que irá guardá-los com muito carinho. Disse pensando no futuro que já conhecia como a famosa biblioteca Mario de Andrade, que na verdade não tem cuidado muito bem do acervo, mas não poderia desanimá-lo. Quanto à biblioteca do Sérgio, sabia que estava bem guardada na Unicamp.
- E a saúde Mário? Ouvi dizer que você não tem andado muito bem. É algo sério?
- Não sei se é sério. Isso só Deus sabe, pois os médicos entendem mais de cifrões do que de saúde. Mas sinto umas dores no peito que chegam e partem como a poesia.
Ouvindo a conversa lembrei que o poeta Mário de Andrada morreria poucos anos depois, em 1944 e estávamos em 1938, ano da fundação do Restaurante Gigetto. Olhei com tristeza para o seu rosto sereno. Pensei em dar-lhe alguns conselhos, mas não sendo médico não sei se ele ouviria com alguma atenção, mas arrisquei: “Olha Mário, não gosto de dar palpites, mas pode ser o coração. Cigarros, muita gordura e vida sedentária podem entupir as coronárias e daí... O Mário cortou rapidamente a conversa dizendo “Viva a boa vida”, nada de dietas, nada de parar de fumar. São os prazeres que fazem a vida valer a pena”.
- E o livro Raízes do Brasil Sérgio, como está sendo recebido pela crítica?
- Não sei não... Penso que o pessoal não entendeu bem a expressão “homem cordial”, com que defino o brasileiro.
- Em pleno século XXI ainda há discussão sobre isso. Comentei sem querer, mas logo disse que era uma brincadeira e que quis dizer que provavelmente o livro provocaria polêmicas por muitos e muitos anos.
Sérgio ficou interessado ao saber que eu havia lido seu livro e disse que gostaria de marcar um novo encontro para conversarmos um pouco mais sobre o assunto, pois nesta noite ele estava com um pouco de pressa, pois precisaria tomar o último bonde para se hospedar na casa de um velho amigo dos tempos de colégio.
- E o Vinicius e o Drummond? Tem visto os dois no Rio?
- Ah sim, o Vinicius está mudando de estilo poético. Não é mais o poeta metafísico de antanho. Deu para escrever versos amorosos e sensuais. Mas são bons versos, não posso deixar de admitir. O nosso Vinícius tem uma sensibilidade rara, principalmente com relação ao sexo feminino. Quanto ao Drummond, aquele mineiro ensimesmado, que fala pouco, mas continua espreitando as saias das mulheres que vivem pela praia, coloridas pelo sol. Olhe só, parece que estou versando... Vou anotar isso, quem sabe um dos meus futuros filhos resolva escrever versos e poderá aproveitar a idéia (risos).
- Mas ouvi dizer que a amizade do Drummond com João Cabral anda estremecida. Eles que eram tão amigos. O que será que houve entre os dois? Perguntou Mario de Andrade.
- Não sei não, meu caro amigo. Acho estranha essa conversa, pois o Drummond e a Dolores foram padrinhos de casamento do João. Estavam sempre a trocar correspondências. Bem... é certo que o Drummond, quando se trata de escrever cartas é mais econômico que o personagem avarento dos Mercadores de Veneza de Shakespeare.
Nisso entrou no restaurante o Oswald de Andrade com sua palheta branca, elegantemente vestido. Ao vê-lo na entrada, Mário de Andrade levantou-se, pediu desculpas para nós e disse que tinha um compromisso urgente. Foi aí que me lembrei de que havia certa animosidade entre os dois. Sérgio Buarque também se levantou para cumprimentar Oswald e eu resolvi sair para acompanhar Mário de Andrade até a porta. Cumprimentei Sérgio e combinamos um encontro na Confeitaria Colombo na próxima semana no Rio de Janeiro. Ao sairmos senti que tudo havia desaparecido. Mil carros modernos e velozes passando pela rua e ainda avistei bem longe, envolto por névoas, o andar apressado do Mário.
Infelizmente estou cá sem saber se sonhara caminhando ao descer a Rua Augusta, ainda fascinado pelo filme A meia noite em Paris ou se havia entrado no túnel do tempo. Não imagino o que possa ter acontecido, mas devo dizer que foi emocionante aquele encontro surrealista com dois dos mais importantes intelectuais paulistas. Como o túnel do tempo é uma ficção, tributo mesmo esta crônica ao desvario da idade.
Renato Ladeia
Renato Ladeia
Oi professor! Adorei o texto! Abraço, Thaís
ResponderExcluirObrigado Thais.
ResponderExcluirMuito bom, Renato. Mas não ter assistido ao filme que motivou a crônica realmente compromete um entendimento mais profundo dela. Vou fazê-lo em breve. Abração.
ResponderExcluirZeca
Pode deixar Tainã, que vou visitá-la em seu blog.
ResponderExcluirabs